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Teresina - Piauí

Francisco de Jesus: um homem na luta contra a violência doméstica

"A sociedade não tolera mais promotor de gabinete, e quando você sai, você consegue resultado, pois o que a sociedade precisa é disso", disse.

No Piauí, um homem tem ganhado destaque na luta em defesa da mulher vítima da violência doméstica. Atuando pelo Ministério Público e há 20 anos promotor, Francisco de Jesus é um nome conhecido no Piauí por atuar em uma área desafiadora, que busca enfrentar um problema cultural e considerado até mesmo “natural” por algumas pessoas no Brasil. A violência contra a mulher é uma luta contínua e para tentar diminuir as ocorrências, o Ministério Público tem investido na Educação e em propostas inovadoras.

Em Teresina, dados levantados pelo promotor Francisco de Jesus, apontam que já foram registrados mais de 8 mil processos, desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2006. A zona sudeste aparece como a região com maior incidência de casos, se destacando o bairro Dirceu Arcoverde. Em seguida vem a zona norte, onde naquela região o Residencial Jacinta Andrade aparece com mais ocorrências, logo depois aparece a zona sul, com destaque para o Parque Jacinta, seguida da zona leste, com o Vale do Gavião, e no Centro, o Morro da Esperança. O álcool, ciúmes e drogas estão entre os principais fatores desencadeadores. As principais vítimas são mulheres de 23 a 45 anos, sendo que há também muitas ocorrências envolvendo mulheres idosas. Entre os casos, 85% são mulheres negras.

Atuando há 20 anos como promotor e há 9 anos na área em defesa da mulher, Francisco de Jesus foi o primeiro promotor a trabalhar especificamente nesses casos. “Comecei trabalhando no interior do estado e na medida que você vai evoluindo na carreira, existem dois critérios de promoção, por merecimento e por antiguidade. Eu fui transferido para Teresina em 2007 por antiguidade, pois era o mais antigo da lista. Foi exatamente um ano após a Lei Maria da Penha ser promulgada, e aí não existia uma promotoria específica para trabalhar a violência contra a mulher. O sistema judiciário ainda achava que os crimes praticados contra as mulheres, eram simples e que não precisaria de uma só promotoria, então esses casos eram divididos com outros promotores. A demanda foi crescendo e foi visto que o crime contra a mulher era de grande proporção, que era preciso de mecanismos especiais para enfrentar a violência, e daí viram a necessidade de se ter uma promotoria específica. E aí me destinaram por antiguidade para atuar nesta promotoria”, explicou.

  • Foto: Bárbara Rodrigues/GP1Francisco de Jesus, promotor de justiçaFrancisco de Jesus, promotor de justiça

Ele afirmou que apesar de estar trabalhando há anos nessa área, ainda se surpreende com os casos que encontra em Teresina, principalmente pela forma como muitos homens acham que é normal agredir uma mulher. Ao GP1 ele contou os casos que mais lhe chocaram, nas três situações as vítimas tiveram coragem de tomar uma atitude contra o agressor.

“Teve o caso de uma senhora vítima de violência, onde o marido dela estuprava as filhas e a maltratava, inclusive quando ela estava grávida. Para se ter uma ideia, esse rapaz chegou a fazer uma lista na cadeia, de quem ele ia matar quando saísse. Eu era o quinto dessa lista, que tinha psicóloga e juiz. Ele foi preso, mas depois foi solto. Ela ainda está no Piauí, mas saiu de Teresina. Ela era feirante e as pessoas sabiam o que estava acontecendo, mas ninguém fez nada. Foi muito triste pois ela e as filhas sofreram muito. Ela acabou denunciando e saindo dessa situação. Outro caso foi de uma mulher que só não foi enterrada viva, porque os caras que estavam cavando a sua cova, ficaram cansados e desistiram. Ela foi muito torturada, o parceiro acorrentava  essa mulher, atirava com a bala passando no ouvido dela, usou uma faca para cortar o cabelo dela, além de bater bastante. Ele mandou uns homens cavarem a cova dela, para ela ser enterrada viva, mas eles cansaram e foram embora enquanto esse agressor dormia. Ela aproveitou e fugiu. Quando ele acordou ela já não estava mais lá. Eu fui até o local onde isso aconteceu e sei que quando ele acordasse teria enterrado ela. Esse rapaz, mataram ele quando estava preso. O último caso que me chocou muito, ainda está em andamento, e a sentença deve sair em breve. Onde um pai estuprava as filhas, tanto do primeiro relacionamento, quanto as do segundo relacionamento, mantendo elas em cárcere privado. Isso foi aqui em Teresina. Eram cinco filhas e a segunda mulher dele foi quem denunciou. Hoje ele está preso”, revelou.

Para o agressor, as justificativas para os crimes são inúmeras, mas muitas delas deixam claro que em pleno século XXI, o machismo ainda é um assunto que precisa ser discutido pela sociedade.

“Ás vezes eu pergunto se eles gostariam de ver a mãe apanhando e muitos dizem que viram a mãe apanhando. Então pra eles é natural. Eu ouço muito isso. Eu também ouço muito história de que ele é ‘homem’ e que a mulher precisava de um ‘corretivo’. Aí a gente começa a descontruir isso, digo para eles, que a minha masculinidade eu não provo por aí. Eles acham que por ser um promotor homem, eu vou entender isso, mas eu mostro que não é assim. Há muita questão do machismo, da naturalização da violência, para eles é um processo natural. É como se fosse tomar banho. Como se o promotor e o juiz não pudesse meter a colher nesse assunto. Cabe a nós descontruir isso”, explicou.

  • Foto: Bárbara Rodrigues/GP1Promotor Francisco de JesusPromotor Francisco de Jesus

A dependência emocional, econômica, afetiva, filhos, medo da não resolução do crime, medo de preconceitos sociais e a esperança de que o homem vai mudar são os principais motivos que ainda fazem as mulheres permanecerem com um agressor. Muitas das que conseguem denunciar, ainda acabam desistindo. É nesse momento que as autoridades precisam interceder pelas vítimas.

“Muitas desistem e nós orientamos naqueles casos que são possíveis, falamos do ciclo da violência, o porquê daquela violência acontecer. Se ela não interromper aquele ciclo, a coisa será mais séria e pode chegar até a um feminicídio. Fazemos todo esse trabalho e orientação e temos conseguido, o que acho mais importante é dar segurança a essa mulher, fortalecendo a Rede de Atendimento, porque não adianta o promotor dizer para denunciar, e chegar lá, a delegada não receber. Ou a delegada mandar ela denunciar, e chegar aqui, e o promotor não denunciar, ou o juiz não julgar. Então tem que ser um trabalho de rede. Então com esse trabalho temos conseguindo esse fortalecimento para que ela [vítima] perca esse receio e saia dessa situação de violência”, disse.

Na Justiça a mulher pode conseguir medidas protetivas contra o agressor, como o afastamento do lar ou ficar a metros de distância da vítima, não poder frequentar os mesmos lugares que ela, além da prestação de alimentos e proibição de negociar patrimônio do casal. Caso descumpra as determinações, é preso.

Como o núcleo funciona para ajudar a mulher

Teresina possui um Núcleo das Promotorias de Justiça de Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar (Nupevid), com o promotor Francisco de Jesus e a promotora Maria do Amparo de Sousa Paz. A mulher que quiser ajuda do núcleo pode se dirigir a sede localizada na Rua 19 de novembro, 155, Centro de Teresina, ou pelo número (86) 3221-1902.

“Quando assumi a promotoria, começamos a desenvolver os processos preventivos, demonstrando que a violência contra a mulher é uma violência praticada todos os dias, todas as horas, e que o Estado e o Ministério Público não poderia deixar de ser omisso de ter uma promotoria especializada. A necessidade foi tanta que se criou um núcleo das promotorias especializadas. Hoje temos um promotor e uma promotora, pois se a mulher quiser ser atendida pela promotora, ela será atendida por ela. Se quiser ser atendida pelo promotor, eu atendo. Deixar a mulher livre na escolha do seu atendimento. Aí em uma semana um dos promotores é responsável pelas audiências que não podem parar, e o outro fica no atendimento. Às vezes a vítima acha que é só na delegacia que pode ter ajuda, mas ela pode se dirigir até ao Nupevid para pedir ajuda”, afirmou.

  • Foto: Bárbara Rodrigues/GP1Sede da NupevidSede da Nupevid

Ele explica que o núcleo ajuda a mulher de diversas formas. “A mulher quando se dirige ao Nupevid, é recebida pela nossa secretária, que questiona se é referente a algum processo. Se ela disser que não, pergunta se ela quer falar com o promotor ou a promotora. Aí ela vai nos relatar qual é a situação que ela se encontra, onde as situações são diversas, ela pode vir buscar informações por um processo que já existe, para pugnar uma medida protetiva de urgência, para que seja feito um divórcio ou que se abra um inquérito policial para apurar algum crime que ela tenha sofrido. De acordo com o caso, adotamos as devidas providências. Se ela quiser o divórcio do seu companheiro, a gente encaminha para a Defensoria Pública. Se for uma medida protetiva de urgência, a gente encaminha para o juiz analisar e deferir. Se for necessário a abertura de inquérito, a gente já requisita a delegada da região que ela reside, para abertura do inquérito. Ou seja, ela já sai com a medida mais ajustada para a situação em que ela se encontra. Nós temos uma filosofia aqui que é de ouvir e respeitar o desejo da vítima e orientar sempre. Se ela tem receio, fazemos todo o acompanhamento do caso”, disse. O núcleo conta com toda uma equipe, que possui até uma psicóloga, para atender as mulheres.

Para o promotor, o Estado possui uma Rede de Atendimento fortalecida que age em conjunto para dar a melhor assistência para a mulher. Ele afirma que “um dos pontos da rede, é que ela não desconhecida. Eu conheço a [delegada] Vilma, conheço a Alessandra, tenho os telefones, inclusive o pessoal. Em caso grave, dependendo da situação, eu não mando ofício, eu ligo e aviso. Conhecer a Rede de Atendimento, é que tem tornado o meu trabalho mais diferenciado. A mesma coisa acontece com elas quando pedem alguma coisa. Essa informalidade e conhecer o pessoal tem ajudado. Se aqui chegar uma mulher necessitando ir para a Casa Abrigo eu já ligo para as assistentes e psicólogas de lá, que vem buscar. O que a gente prima é por isso, uma respostas dos órgãos”.

Projetos

homeM, com M maiúsculo: Sensibilizar para abordar

Como a violência é em parte, um problema cultural, o Ministério Público tem apostado em projetos, com o objetivo de conscientizar os piauienses. O mais recente projeto é o Protocolo Piauiense de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Francisco de Jesus explicou que como os policiais militares são os primeiros a atenderem as ocorrências de violência, existe a necessidade de sensibiliza-los diante da situação. Por isso, foram formadas algumas turmas, onde os policiais são informados de forma jurídica, psicológica e sociológica do assunto.

Com o protocolo, os policiais vão preencher um Boletim de Atendimento, onde vão responder várias questões que serão encaminhadas ao Nupevid.  “Desenvolvemos esse projeto, pois os policiais são importantes, já que o meu trabalho e o do juiz, depende do trabalho inicial deles. Já estamos na oitava turma e queremos atingir nessa primeira etapa uns 800 policiais, que são os operacionais, que estão no dia a dia, e conhecem todas essas situações. Eles têm muito relatos, dizem que ficam tristes quando o agressor é conduzido e não é atendido na delegacia, ou que levam a mulher para delegacia, mas ela é convencida a desistir de denunciar, e aí depois eles atendem a mesma ocorrência. O que eu quero com esse projeto, é saber o que está ocorrendo nesse atendimento à mulher. Vamos fazer um Boletim de Atendimento, que vai ter várias questões, onde o policial vai poder marcar a resposta ‘sim’ ou ‘não’. Uma das perguntas que fazemos é se o caso foi levado à delegacia de polícia e se a vítima foi atendida. Se a vítima não tiver sido atendida, eu vou entrar em contato com o responsável pela delegacia e saber o porquê. Com a certificação dos policiais no próximo ano, a gente já vai entregar o protocolo. Os policiais também terão folhetos para poder orientar as vítimas sobre os espaços onde elas podem ser atendidas”, afirmou.

  • Foto: Bárbara Rodrigues/GP1Francisco de Jesus, promotorFrancisco de Jesus, promotor

Outro ponto do projeto é “criar um link entre judiciário e polícia militar. Pois após o juiz deferir a decisão, ele manda essa informação para o comando geral, que vai informar ao batalhão da região onde a vítima reside. Esse batalhão vai ficar ciente que essa mulher possui uma medida protetiva, e que em vez de esperar essa mulher reclamar, eles vão fazer visitas a ela, questionando se a medida protetiva está sendo cumprida. De acordo com a resposta, nós vamos ser informados”.

Lei Maria da Penha nas Escolas

Iniciada em maio de 2015, com a participação de 5 Gerências Regionais de Educação, 39 escolas, 601 professores e 10.503 alunos, o Ministério Público em parceria com a Secretaria de Educação, leva para os alunos o tema da violência doméstica. A cartilha da Lei Maria da Penha é discutida com os professores, que repassam isso para os alunos, através da realização de diversas atividades, com criações de músicas, peças teatrais, cordel, textos, entre outros projetos.

“Esse trabalho tem sido espetacular, porque o promotor não sai do gabinete para tirar aluno da sala de aula. Nós damos suporte aos professores que trabalham o assunto na sala de aula. Aí obtemos resultados maravilhosos. No Enem do ano passado estávamos no auge dos trabalhos e esse foi o tema da redação. Todos os alunos que participaram do projeto e fizeram o Enem, o menor tirou 800 pontos. Caroline Oliveira da Unidade Pires de Castro, no Dirceu, tirou 960 pontos na redação, enquanto a maior nota de escola particular tirou 980, então pra mim foi a maior nota de redação do Brasil, por ter sido incentivada pelo projeto. Foi uma surpresa quando ela me ligou agradecendo”, disse ao GP1. O próximo objetivo é levar o projeto para as escolas particulares.

Pornografia musical

“Um dos trabalhos é principalmente contra a pornografia musical e coisas como, ‘se a mulher subir no palco e tirar a calcinha ganha R$ 100’. Nós adotamos as medidas de recomendação aos espaços para que se abstenham de realizar isso, pois a mulher não pode ser vista como objeto, encaminhamos para a polícia militar monitorar e isso tem dado muito resultado, pois até onde eu sei, nenhuma dessas festas foi realizada aqui. São medidas de urgência, adotadas pelo Ministério Público para a não ridicularizar as mulheres”, afirmou.

Ipenha

O promotor teve a iniciativa de criar no estado do Piauí um banco de dados sobre os casos de violência doméstica. Criado em novembro de 2014, ele foi apresentado em março deste ano no Senado Federal por Francisco de Jesus, e agora o governo federal irá criar o Banco de Dados Nacional.

“Com o Ipenha catalogamos através dos inquéritos, onde eu extraio todos os dados e jogo nesse sistema para saber qual o bairro mais vulnerável a violência, qual o perfil do agressor, da vítima, tudo isso é monitorado pelo Ministério Público para a realização de políticas públicas. Não podemos ficar trabalhando com achismo, e agora temos dados para isso. Uma grande alegria nossa é que vai haver esse Banco de Dados Nacional e estamos agora construindo a comunicação do Ipenha com esse sistema nacional”, informou.

Interiorização

 Levar a importância da Lei Maria da Penha para o interior é um dos objetivos do Nupevid. “Se a cultura machista é grande na capital, imagina no interior. O que vemos é que a mulher é vítima de violência e pede apoio da família. Você vai falar com o pai desse vítima e ele diz: “oh doutor é o seguinte, quando ela estava na minha posse, eu podia fazer  alguma coisa, mas agora está na posse do marido”. Então são esse tipo de coisas que nos dizem o quanto precisamos fazer algo para mudar esse tipo de pensamento, onde a mulher é tratada como posse. Criamos em um São Raimundo Nonato a primeira secretaria municipal de Políticas para Mulheres do Brasil, isso é muito importante. Em Cocal de Telha temos o Conselho Municipal de Direito das Mulheres, em Parnaíba temos o Núcleo de Enfrentamento a Violência. Então a gente vai plantando as sementinhas em todos os espaços”, disse.

Projeto Laboratório Maria da Penha

“Com apoio de 10 faculdades, inclusive no interior, vamos aos espaços acadêmicos, discutir a lei, artigo por artigo. Depois os alunos visitam cada órgão para saber se eles estão agindo de acordo com a lei. Os alunos fazem o relatório e apresentam ao Ministério Público. Eu estou presente em todas as apresentações. Aí eles dizem os pontos positivos e negativos de um órgão. Conferimos tudo e com base nisso, nós notificamos esse órgão para que ele faça as devidas melhorias. A ida dos estudantes preocupa os operadores, pois sabem que estão sendo monitorados e o Ministério Público fica tranquilo, pois eu não tenho braço para ir em todas as delegacias, mas os estudantes estão lá e apresentam relatório para mim e eu sei o que está acontecendo”, revelou.

Promotor tem que sair do gabinete

“Me orgulho dos trabalhos desenvolvidos, principalmente porque o Ministério Público tem um grande compromisso social, esse compromisso é não só com a Maria da Penha, mas em todas as esferas, isso significa sair do gabinete e do ar-condicionado, a sociedade não tolera mais promotor de gabinete, e quando você sai, você consegue resultado, pois o que a sociedade precisa é disso. Ter um órgão que se preocupe com o seu tema, e a sociedade quer ter presente aquela autoridade e eu fico feliz em atender esse reclame e ter o retorno. Quase toda semana recebo grupos de estudantes que querem conhecer esse trabalho, nas redes sociais recebo muitos elogios e com isso a gente se sente premiado, em saber que o meu trabalho e o da equipe é reconhecido. Acho que temos que dar uma resposta para a sociedade”, finalizou.

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