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"Todos têm direito de se enganar nas suas opiniões. Mas ninguém tem o direito de se enganar nos fatos." (Bernard Baruch)

Era para ser apenas mais uma aula teórica numa tarde fria do outono londrino. A professora descortinava temas relacionados aos direitos das crianças frente ao relativismo cultural, em outras palavras, tratava do tema da universalidade dos direitos do homem em oposição à prática de atos degradantes, mas aceitáveis por parte de certas culturas.

O foco em questão era a prática da mutilação genital realizada em crianças e adolescentes em alguns países da África, que apesar de legalmente proibida em vários deles, continua a existir em razão de uma suposta promoção da virgindade e prevenção da promiscuidade feminina.

Até então os alunos apenas ouviam as explanações, quando a professora perguntou para a turma qual era a nossa opinião sobre o tema. O primeiro a se manifestar foi um colega africano que argumentou em alto e bom tom que as culturas locais tem o direito de preservar suas tradições sem a interferência do Ocidente (oeste).

Nesse momento começaram as minhas dúvidas... Até então, recordando as minhas longínquas aulas de geografia, eu achava que a África era também considerada Ocidente, ou pelo menos parte dela, já que o meridiano de Greenwich divide tanto a Europa como a África. Não tive muito tempo para refletir sobre o tópico geográfico, pois quase de imediato a colega inglesa retrucou, dizendo que aquela postura era absurda, pois práticas abusivas contra o ser humano desrespeitam a declaração da ONU sobre o tema.

Quase que imediatamente o colega africano respondeu dizendo que a referida declaração refletia os anseios do ocidente dominante, e não representava as reais necessidades locais.

A discussão foi tomando proporções apaixonantes com a conseqüente exaltação dos ânimos, em assim sendo a professora achou melhor dar um intervalo para a turma.

Sem dúvida a declaração da ONU foi um marco histórico na defesa dos direitos humanos, entretanto num debate acadêmico deve prevalecer a força do argumento e não o argumento da força. Nesse contexto, a declaração não deve subsistir por si só. É imperioso que adicionemos a ela o conteúdo moral de respeito aos direitos humanos que respaldou a sua criação. A idéia de proteção a esses direitos deve prevalecer pelo simples fato de que estamos tratando de seres humanos que nascem, ou pelo menos, deveriam nascer, com direitos à vida, à dignidade, à liberdade, dentre outros. Direitos esses respaldados pela teoria do direito natural, que assevera que nenhuma lei ou tradição pode ser considerada como tal, a não ser que seja justa e razoável.

Esses direitos são todos infinitamente superiores a qualquer tradição local perpetrada por interesses inconfessáveis e mantida por líderes preocupados mais em preservar seus privilégios do que no bem estar de suas comunidades.

Além da dúvida geográfica, fui embora naquele dia com a sensação de que para nós todos naquela classe, naquele dia, foi mais uma tarde fria de outono, enquanto para outras crianças pelo mundo afora, pode ter sido uma tarde de horror e desespero.

Boa sorte a (nós) todos.

Londres/RU, 22 de janeiro de 2009.

José Anastácio de Sousa Aguiar
 

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

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