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Recuperação global pode não salvar a América Latina

Três fatores ameaçam impor uma nova ‘década perdida’ para a economia e a sociedade da região.

Um crescente desequilíbrio global ameaça enfraquecer ainda mais os já vulneráveis mercados emergentes: gigantescas disparidades em termos de vacinação entre economias avançadas e em desenvolvimento podem exacerbar o que o Fundo Monetário Internacional (FMI) apelidou de “recuperações divergentes” – com consequências desastrosas para a América Latina.

Apesar de abrigar somente 8% da população mundial, a região concentra aproximadamente 30% das mortes por covid. A pandemia também prejudicou o PIB e o emprego na região mais do que em outras em desenvolvimento. Pobreza e desigualdade foram às alturas, potencialmente frustrando 20 anos de progresso conquistado a muito custo.

Enquanto países latino-americanos tentam recuperar o que perderam no curto prazo, uma recuperação global desigual ocasionará consequências econômicas sombrias por meio de três principais canais de transmissão: efeitos colaterais do setor da saúde, riscos macroeconômicos e políticos globais e consequências sociais.

Efeitos colaterais das questões de saúde

Primeiramente, efeitos diretos e indiretos de uma recuperação desigual na saúde global poderiam reduzir ainda mais a atividade econômica. Domesticamente, veremos impactos crescentes de coberturas de vacinação inadequadas e desdobramentos disso sobre os vulneráveis mercados de trabalho da região, já caracterizados pela alta informalidade e a diminuta quantidade de trabalhos que possam ser realizados remotamente. Isso, por sua vez, influenciará o crescimento regional, que tem sido excessivamente dependente do emprego, em vez de melhorias na produtividade.

Preocupações sanitárias continuarão a afetar exportações regionais, especialmente em setores de serviços que implicam em intenso contato humano. Em 2020, os voos internacionais despencaram 69% em relação ao ano anterior nas Américas, o que surtiu um impacto devastador em países caribenhos dependentes do turismo. Se bolhas de viagens e passaportes de imunidade se tornarem predominantes nas partes vacinadas do mundo, uma sensação de desconfiança ou até discriminação – ainda que velada – pode emergir contra países latino-americanos que ainda não tiverem vencido o vírus (ou que tiverem usado vacinas alternativas).

Na verdade, os riscos elevados de infecção não afetaram somente o movimento de serviços e pessoas, mas também de mercadorias – por meio de complicações fitossanitárias como as sentidas pelos exportadores de carne brasileiros – e capital, o que nos leva ao seguinte canal de transmissão.

Riscos macroeconômicos e políticos globais

Em segundo lugar, uma recuperação robusta de Estados Unidos, União Europeia e China, ainda que bastante benéfica para a economia global, esconde alguns riscos importantes para os que ficam atrás. Por exemplo, movimentos inflacionários mais agudos do que o esperado ou movimentos no preço e nos retornos de obrigações e taxas de juros, em uma economia americana pujante em todos os demais aspectos, poderiam elevar taxas, fortalecer o dólar e mudar a disposição de investidores em assumir riscos. As consequências de um “taper tantrum” – reação apavorada a uma reversão de política do Federal Reserve que aumenta a liquidez no mercado – são bem conhecidas pelos mercados emergentes, especialmente na América Latina.

No passado, tais manobras do FED, o banco central americano, foram sentidas na forma da saída de capitais, depreciação de moedas locais e agravamento do fardo da dívida e balanços financeiros. A América Latina é atualmente a região em desenvolvimento mais endividada do mundo (com endividamento médio de 79% do PIB) e custo de manutenção equivalente a 57% da dívida externa em relação a exportações e serviços.

Adicionalmente, a pandemia poderia reverter ainda mais a globalização, o que acontece desde os anos anteriores à crise sanitária. Persistentes tensões entre EUA e China, controles generalizados sobre exportações de equipamentos de proteção e vacinas e um potencial rearranjo de estratégicas cadeias de fornecimento são sinais de uma crescente fragmentação. E a maneira como a América Latina lida com a pandemia e a economia pode ser altamente suscetível a esses ventos contrários macroeconômicos e geopolíticos. Isso, por sua vez, poderia limitar a capacidade da região de aproveitar as oportunidades geradas pela desglobalização, tais como relocalização e terceirização de ganhos por meio de melhorias nas cadeias de fornecimento dentro da região.

Consequências sociais

Finalmente, uma recuperação estendida agravará descontentamentos sociais já existentes, com implicações na economia. Durante e até mesmo antes da pandemia, instabilidades sociopolíticas se evidenciavam nos países latino-americanos, à medida que cidadãos exigiam melhorias em infraestrutura e serviços públicos, incluindo educação e mobilidade pública, e maiores esforços contra corrupção generalizada e desigualdade.

Enquanto governos regionais se viram mais pressionados para atender as necessidades durante a pandemia de covid, sua capacidade é prejudicada por fatores como posições fiscais cada vez piores. Em um contexto global, a intensidade dos pacotes de resgate econômico implementados na América Latina – mesmo em líderes regionais, como Brasil, Chile e Peru – não é equiparável à ajuda nos EUA e na UE.

A provável diferença no ritmo e no trajeto dos caminhos para a recuperação global e as crescentes volatilidades domésticas na região poderiam minar a atratividade da América Latina como destino de investimentos. Isso é especialmente preocupante para uma região que já sofre com as mais baixas taxas de investimento em relação ao PIB no mundo, após um declínio de 37% no fluxo de investimento externo direto no ano passado – a pior queda registrada nas regiões em desenvolvimento.

Para piorar as coisas, os impactos econômicos relacionados à covid serão distintos entre grupos demográficos específicos. Na região mais desigual do mundo, mulheres vulneráveis, comunidades rurais e trabalhadores informais foram prejudicados mais severamente pela pandemia do que outros grupos mais bem posicionados economicamente, em razão do acesso limitado a empregos bons e resilientes, à internet, etc. Em alguns países, a própria distribuição das vacinas se tornou um novo elemento motivador de desigualdade.

O que fazer?

Mas em meio à paisagem sombria no curto prazo há também perspectivas favoráveis no médio e longo prazos. Ainda que a pandemia tenha evidenciado fraquezas socioeconômicas estruturais, ela também ocasionou um senso de urgência sem precedentes, assim como motivações para enfrentar problemas. E no médio ou longo prazos, isso poderia fazer com que a região empreenda o tão necessário e há tanto ignorado aumento de crescimento. O sucesso da recuperação pós-covid na América Latina não deveria ser definido simplesmente por um retorno fiel aos índices de produtividade pré-pandemia – que eram inexpressivos e sujeitos a choques. Deveria constituir, em vez disso, um ponto de inflexão na direção de padrões de crescimento mais resilientes, inclusivos e produtivos.

Formuladores de políticas latino-americanos deveriam explorar ativamente maneiras de capitalizar sobre os legados positivos da covid. O sucesso de autoridades subnacionais ágeis e de soluções locais, a necessidade e a perspectiva de maior integração e colaboração regional, o potencial de aceleração da transformação digital e o atual impulso para colaborações entre os setores público e privado em relação à saúde e outros serviços expandem o kit de ferramentas de políticas públicas disponíveis para os governos latino-americanos.

Outros parceiros, especialmente do setor privado, podem contribuir significativamente com muitos desses esforços e liderar outras iniciativas, como estabelecimento de diretrizes ambientais, sociais e de governança (ESG) para investidores e gerenciamento de corporações, assim como conceituar o crescimento verde.

A comunidade internacional também tem um papel-chave na mitigação das consequências de uma recuperação global desigual. Países ricos podem colaborar com o combate à desigualdade nos países em desenvolvimento, por exemplo, fazendo doações diretas de doses excedentes de vacinas, integrando e financiando iniciativas como Covax ou, pelo menos, limitando suas atitudes nacionalistas em relação aos imunizantes.

O recente anúncio dos EUA de doações de vacinas é um encorajador primeiro passo nessa direção. Ainda que não devamos esperar “milagres” de organizações multilaterais, o apoio delas por meio de financiamentos, know-how e poder diplomático será essencial para suavizar desafios imediatos e no longo prazo causados pela covid na América Latina e Caribe. Sem ações decisivas e visionárias de atores regionais e internacionais, a América Latina arrisca enfrentar mais uma “década perdida”.

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