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Arthur Teixeira Junior *

Imagem: ReproduçãoArthur Teixeira Junior(Imagem:Reprodução)Arthur Teixeira Junior

Vó Ida (na verdade era Idalina) morava no bairro operário da Moóca, em São Paulo, em uma típica casa “de corredor”, moradia típica dos imigrantes italianos. Entrávamos por uma porta de madeira de duas abas, subíamos três degraus e acessávamos um imenso corredor com menos de 80 cm, que findava quase a perder de vista em outra portinhola de madeira com uma janelinha, dando acesso ao “terreiro”, uma área aberta com duas ou três árvores, uma enorme mesa de madeira tosca, bancos parecidos com aqueles de igrejas, onde a família toda reunia-se no primeiro domingo de cada mês para colocar os assuntos em dia.

Pelo corredor, com assoalho de madeira e revestido com uma passadeira, à direita ficavam os cômodos. O primeiro era o quarto da vovó, que há anos estava prostrada em uma cama, onde havia também a cama da tia Luíza, que sempre dizia que ficou solteira somente para cuidar da vovó. A verdade não era bem essa. Tia Luíza era feia como a fome, e diziam que, pelo fato de seu parto ter sido a fórceps, ela teria, por acidente, sido virada do avesso, e assim crescido.

Nas reuniões de Domingo, os parentes iam revezando-se em turnos de 40 minutos, um a um, na vigília da velha. Logo pela manhã, tia Luíza organizava a listagem dos presentes e colocava em uma folha de caderno pregado no tronco da seringueira. Todos ficavam aflitos com a aproximação de sua vez para a tarefa, não só pelo tédio em vigiar uma moribunda que pouco se mexia, mas todo aquele que se ausentava era fatalmente o assunto para os demais.

Naquele Domingo de Páscoa, pouco antes do almoço, chegou minha vez para a vigília. Lá fui eu, e, antes de passar pelo terceiro cômodo, já sentia a orelha quente, pois era certamente o alvo das fofocas. Sentei-me na pontinha da cama vazia da titia, de frente para D. Ida, que olhava-me de rabo do olho estatelado e com a boca entreaberta com a pontinha da língua para fora, como se quisesse dar-me a língua. Eu lia tranquilamente a “Folha de São Paulo” e, de quando em quando, dava uma espiadela na velha e sua língua de fora. E foi numa destas espiadelas que notei que, embora seus olhos continuassem estatelados e sua língua de fora, nenhum outro movimento, inclusive respiratório, emanava daquele corpo raquítico. Resolvi fazer o teste de constatação de óbito. Tirei uma pena do espanador de pó que tia Luíza mantinha pendurado detrás da porta e esfreguei-a delicadamente no canal auditivo da vó Ida, que nem se mexeu. Estava certamente morta.

Andei calmamente pelo corredor e fui até a janelinha que dava para o terreiro: “_ Tia Luíza ! Vem cá que quero te mostrar uma coisinha ...” – exclamei como se fosse um segredo a ser revelado. Caminhamos calados, eu na frente e titia atrás, pelo longo corredor. Quando chegamos ao quarto de vovó, ultrapassei a porta e girei sobre os calcanhares, solene, dando entrada à titia. Da porta mesmo ela viu vó Ida toda esticadinha, com os olhos fechados e o queixo erguido, as mãos postas sobre o peito coberto pelo amarelado lençol, um pouco curto, tanto que estavam à vista os pés enrugados e parte das brancas canelas da defunta, tudo do jeitinho que eu havia deixado antes de chamar tia Luíza. Ela (a tia) soltou um grito estridente e apavorante, indo ajoelhar-se já aos prantos convulsivos ao lado da vovó.

A tropa do terreiro precipitou-se em correria pelo corredor adentro, quase atropelando tio Afonso que saia do banheiro ainda abotoando as calças. Em segundos, toda a família se amontoava no quarto, exceto eu que na porta permanecia como um guarda romano. Passado alguns minutos, prima Lucila, indignada, virou-se abruptamente para mim que quieto estava: “_Isto é jeito de se dar uma notícia desta?” _ berrou, sendo seu protesto prontamente endossado pelos demais presentes, que naquele momento esqueceram da velha e resolveram me esculachar.

Mas o que eles queriam que eu fizesse? Poderia ser:“_ Êi pessoal! Adivinhem quem morreu!” ou “_Quem tem mãe levanta a mão! ...tia Luíza nunca entendendo as brincadeiras...” ou ainda “_ Amanhã é folga para todos! Teremos um enterro para ir!”.

Nunca fui bom com o trato com estes tipos de acontecimento. Perdí as contas de quantas vezes dei os “parabéns” para a chorosa viúva. Ou os “sinceros pêsames” para quem nem conhecia o falecido.

Mas meu ápice foi quando um acidente automobilístico ceifou as vidas da mãe, da esposa e do único filho de meu colega de trabalho, o Adalberto, que naquele feriado tinha permanecido de plantão e mandou a família na frente para a casa de veraneio. Todos da Repartição ficamos muito abalados. Não tive coragem de ir ao sepultamento, à missa ou a qualquer outra atividade relacionada. Dois meses se passaram até Adalberto ter condição de reassumir o trabalho. Olhos fundos, visivelmente abatido, muitos quilos mais magros, parecia outro homem. Corri para a porta do escritório para abraçá-lo, como realmente fiz, num aperto forte e emocionado. Afastei-me um pouco, mantendo minhas mãos sobre os ombros de Adalberto, braços esticados, olhar firme e encorajador, olhos nos olhos, suspirei fundo e disse com voz firme: “_Poderia ter sido pior...”

“_Como ?” – balbuciou Adalberto, antes que meus colegas afastassem-me dali aos safanões e empurrões...

* Arthur Teixeira Junior é funcionário público

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

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