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Magistrados piauienses e argentinos firmam intercâmbio Jurídico-cultural

Artigo do desembargador Edvaldo Pereira de Moura, que é diretor da ESMEPI e professor da UESPI.

Foto: Arquivo pessoalEdvaldo Moura
Edvaldo Moura

Desembargador Edvaldo Pereira de Moura

Professor da UESPI e Diretor da ESMEPI

Antes de tudo, cabe-nos registrar a acolhida gentil e generosa com que os magistrados piauienses foram recebidos, entre os dias 2, 3 e 4 de maio do ano de 2019, no solo úbere e glorioso da irmã Argentina, por ocasião de bem pensado intercâmbio jurídico-cultural concebido pela nossa aguerrida e vanguardista Associação Piauiense de Magistrados, na gestão do colega Thiago Brandão de Almeida, com os ilustres amigos, colegas e vizinhos da província de Entre Ríos, que sempre mereceram o nosso respeito e admiração, no curso natural da riquíssima e movimentada história comum aos nossos adorados países.

Como sabemos, somos filhos do mesmo continente, herdado dos nossos antepassados e conquistadores do Novo Mundo. Trazemos nas veias o sangue heroico da Ibéria Peninsular europeia. Eles, da Espanha cervantina, e nós, da Lusitânia camoniana, marcos maiores da cultura lusoespanhola nas Américas, que ajudaram a firmar, para sempre, neste continente, a beleza harmoniosa dos nossos falares, tão parecidos e tão singulares.

Deveríamos participar, representando o Tribunal de Justiça do Piauí, de tão importante intercâmbio, não como simples turista, nem como conferencista, mas como visitante desse país amigo, embora tivéssemos, em comum, um assunto de interesse mútuo para tratarmos: o Direito, matéria própria das atividades profissionais da quase unanimidade dos que se fizeram presentes a esse importante evento. Mesmo que tivéssemos ido, não havíamos assumido nenhuma obrigação de falar, como professor e estudioso da Ciência Jurídica, naquele país. Dispusemo-nos a viajar tão somente para prestigiarmos esse notável evento, tendo mais a ouvir do que a falar. Ouvir mais do que falar, pelo prazer de nos assenhorear das lições irrepreensíveis e das valorosas experiências dos magistrados e mestres argentinos, sobre os quais temos lido bastante e que tanto nos causam orgulho e admiração.

Os mestres do Direito Argentino sempre tiveram lugar de absoluto destaque no mundo jurídico da América Latina. Disso nós, brasileiros, nos orgulhamos muito.
Os juristas argentinos são tratados, no mundo acadêmico brasileiro, com a mesma
autoridade e a mesma estima, com que temos acolhido os grandes mestres de outros países. Afinal, possuímos a mesma genética constitucionalista: todos somos herdeiros das Cortes de Cádis e de Lisboa que, no século XIX, depois da Revolução Francesa, começaram a dar poderes de estados livres, às ex-colônias espanholas e portuguesas.

Suspendemos, agora, as nossas incursões pelas entranhas da história que nos liga à Argentina, para dar-lhes testemunho de algumas revelações que já adiantamos. Embora sejamos do campo do Direito Penal, abriremos algumas clareiras no Direito Civil, para lhes mostrar, em breves comentários, como e por que temos a nossa formação acadêmica relacionada com os mestres argentinos, de ontem e de hoje. Não esperem de nós conhecimentos aprofundados sobre as duas personalidades a respeito das quais, a seguir, teceremos rápidas considerações. Longe de nós, tamanha pretensão.

Começaremos pelo respeitável mestre, Dámaso Simón Dalmacio Vélez Sársfield, advogado e político argentino, autor do Código Civil daquela nação, que vigorou até o ano de 2015. Concluiremos com a menção de honra e agradecimento a esse monstro sagrado do Direito Penal, Eugenio Raúl Zaffaroni, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal argentino, amado e respeitado pelos mestres e juristas brasileiros e de todos os países do mundo.

Dispensaremos sobre ele e sobre o não menos respeitável civilista Dalmácio Sársfield, pela exiguidade de espaço, qualquer esboço bibliográfico, para somente revelar rápidas informações partidas de seus incondicionais admiradores brasileiros de ontem e de hoje.

Desde o meado do século XIX, o Brasil e a Argentina jamais estiveram tão próximos entre si, para resolverem problemas comuns ao Direito Civil, como quando os gênios de Augusto Teixeira de Freitas e Dalmácio Vélez Sársfield juntaram suas ideias na luta pela codificação do Direito Civil dessas duas nações.

No Brasil, a luta pela elaboração do regramento civil foi uma das mais difíceis e dolorosas. O jurista piauiense Antônio Coelho Rodrigues, que continuou o trabalho de Teixeira de Freitas, sofreu agruras e perseguições políticas inomináveis. Teixeira de Freitas, no final de sua vida, recolheu-se a uma clínica de tratamento mental, onde faleceria pobre, esquecido e louco, aos 67 anos de idade.

O Desembargador Emeric Lévay, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em
magistral monografia, sobre Teixeira de Freitas, disse: “O Projeto de Codificação do Direito Civil brasileiro, elaborado por Teixeira de Freitas, precede a todos os demais, na força da síntese e da substância”[1]. No seu trabalho, o magistrado paulista faz alusão à obra de Teixeira de Freitas, esse extraordinário civilista, que ofereceu sua valiosíssima contribuição à codificação do Direito Civil argentino e de diversos outros países sul-americanos.

“Como notou Pontes de Miranda, o ‘Esboço' de Teixeira de Freitas foi a fonte dos trés primeiros livros do Código Civil argentino, e muito concorreu para o do Uruguai e para as leis de outras repúblicas hispano-americanas”.[2]

Em verdade, o jurista Dalmácio Vélez Sársfield, que levou mais de quatro anos para a preparação do Código Civil platino, sancionado a 29 de setembro de 1896, confessa haver levado em conta “as fontes do direito romano, os antecedentes pátrios, os usos e costumes e as doutrinas dos grandes civilistas, como Daniel Antokoletz e Teixeira de Freitas, cujo método procurou seguir, no tocante à divisão do Direito Civil em parte geral e parte especial, de modo a dominar cerca de um terço do código do país vizinho.”

O pensamento do Autor do ‘Esboço' exerceu forte influência no Direito chileno, através do jurista Andrés Bello e, indiretamente, no Código Civil da Nicarágua de 1904, que reproduziu vários dispositivos do código argentino, o mesmo ocorrendo com os códigos do Uruguai e do Paraguai, como demonstrou Haroldo Valladão.

Segundo lembrou René David ('Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo'.21edição, p. 108, nota 10), foi Teixeira de Freitas quem primeiro teve a ideia de fazer distribuírem-se as matérias compreendidas num código civil, em parte geral e especial, antecipando, neste ponto, ao gênio alemão, “tão propenso às especulações e sistematizações, que mais tarde, indiretamente, sem o saber, o tomara como espécie de paradigma, ao menos em suas linhas gerais, no seu estatuto civil de 1896”.

Mencionamos, por último, alguns comentários sobre o inigualável penalista argentino, Eugénio Raúl Zaffaroni.

Em 5 de julho de 2009, o mestre Zaffaroni concedeu à jornalista Marina Ito, do site Consultor Jurídico, emblemática entrevista, escolhida em 2017 como uma das mais importantes publicadas por aquele espaço virtual, nos últimos 20 anos. Marina Ito inicia o seu trabalho com as seguintes declarações:

“O argentino Eugenio Raúl Zaffaroni é considerado uma das maiores autoridades mundiais em Direito Penal, na atualidade. Referência obrigatória na América Latina, é um dos responsáveis por fazer uma releitura crítica do Direito Penal. Juiz da Corte Suprema Argentina, magistrado de carreira, exerceu a advocacia, passou rapidamente pela política em seu país e produziu uma vasta e conceituada obra de sua especialidade”.[3]

De passagem pelo Rio de Janeiro, para participar de seminário promovido pelo
Instituto Carioca de Criminologia, Zaffaroni concedeu entrevista, como frisado, ao Consultor Jurídico, na qual resumiu o papel do Direito Penal: “A função do Direito Penal, hoje e sempre, é conter o poder punitivo”. Para ele, cabe também, ao Judiciário, limitar o poder punitivo. “No curso da história, muitas vezes o Judiciário traiu sua função. Quando isso acontece, os juízes deixam de ser juízes e se tornam policiais, ‘fantasiados’ de juízes”.

Falando a respeito do atual sistema carcerário, Zaffaroni é incisivo e direto:

“Cria-se uma paranoia social e estimula-se uma vingança que não tem proporção, com o que acontece na realidade da sociedade em que vivemos. Através da história, tivemos muitos inimigos: hereges, pessoas com sífilis, prostitutas, alcoólatras, dependentes químicos, indígenas, negros, judeus, religiosos, ateus. Agora, são os delinquentes comuns, porque não temos outro grupo que se candidate. Esse fenômeno decorre do fato de os políticos estarem presos à mídia, seja por oportunismo ou por medo, adotando o discurso único da mídia, o da vingança, sem perceber que isso enfraquece o próprio poder.”

“O rico, às vezes, vai para a cadeia também. Isso só acontece quando ele se confronta com outro rico e perde na briga. Tiram a cobertura dele. É uma briga entre piratas. Nesse caso, o sistema usa o rico que perdeu. E, excepcionalmente, o derrotado acaba na cadeia. Mas ter um VIP na prisão é usado pela mídia para comprovar que o sistema penal é igualitário”.

Diz a jornalista Marina Ito: “Frequentador habitual de eventos no Brasil, não é raro ver o juiz da mais alta Corte de Justiça da Argentina assistindo palestras, discretamente, no fundo do salão, às vezes, até mesmo em traje esporte, sem assessores por perto e sem as formalidades tão caras ao meio jurídico acadêmico. ‘Não me imagino diferente’, diz a respeito do seu jeito informal, Raúl Zaffaroni.”

Com essa intimidade de mestre da simplicidade e do seu tempo, Zaffaroni já recebeu entre nós, o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Rio de Janeiro, pela Universidade Federal do Ceará e pela Universidade Católica de Brasília, além de outras.

Assim sendo, o mestre Zaffaroni vem sendo, com muito zelo e generosidade, um dos mais brasileiros entre os argentinos, pela assiduidade com que tem nos visitado. Nenhum cientista do Direito é mais amado entre nós do que o grande e genial Eugenio Raúl Zaffaroni, que em 7 de janeiro de 2020 festejou os seus oitenta anos de idade.

Infelizmente, não nos foi possível viajar à Argentina, como gostaríamos, para participar dessa oportuna e adequada integração entre os nossos magistrados e os daquele país. É que, infelizmente, na véspera da viagem, fomos forçados a desistir desse proveitoso evento, porque a nossa esposa, que também é magistrada, acidentou-se e ficou impossibilitada de nos acompanhar. Como havíamos elaborado essa modesta manifestação, a encaminhamos aos colegas argentinos, por meio do Presidente da Associação dos Magistrados Piauienses, Thiago Brandão de Almeida e do amigo e professor Plauto Cardoso, que conceberam a ideia do aludido e pertinente encontro.

REFERÊNCIAS

LÉVAY, Emeric. A Codificação do Direito Civil Brasileiro pelo Jurisconsulto Teixeira de Freitas. Disponível em: <file:///C:/Users/TJPI/Downloads/admin,+12.pdf>. Acesso em 24/11/2021.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Raúl Zaffaroni, jurista argentino: "Função do Direito Penal é limitar o poder punitivo". Entrevista concedida a Marina Ito. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/20anos/2017-ago-03/raul-zaffaroni-jurista-argentino-funcao-do-direito-penal-e-limi>. Acesso em 24/11/2021.

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

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