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Com pouco dinheiro, novo regime afegão já enfrenta crise

Negociadores de moedas como Enayatullah e sua rede financeira clandestina enfrentam escassez.

Enquanto os afegãos pagam preços cada vez mais altos por ovos e farinha e fazem longas filas diante dos bancos, negociadores de moedas como Enayatullah e sua rede financeira clandestina enfrentam uma desesperadora escassez.

Enayatullah — cujo nome de família será preservado — mantém um pequeno negócio em uma afluente rede de emprestadores informais de dinheiro e banqueiros clandestinos chamado hawala. O Talibã usou o hawala para ajudar a financiar sua finalmente vencedora insurgência. Muitos cidadãos usam o sistema para receber dinheiro de parentes que vivem em Istambul, Londres e Doha. Sem o dinheiro do hawala, a vida econômica em regiões inteiras do Afeganistão poderia sofrer uma estagnação arrasadora.

Hoje isso é uma possibilidade muito próxima. A ajuda estrangeira secou. Os preços estão aumentando. O valor da moeda afegã está despencando. Os US$ 9,4 bilhões em reservas do país foram congelados.

E o hawala não será suficiente, disse Enayatullah, afirmando que a necessidade de dinheiro vivo deixou as pessoas tão desesperadas na semana passada que ele elevou sua comissão para 4% de cada transação, cerca de oito vezes a taxa que cobrava normalmente. O sistema está enfrentando agora uma escassez de dinheiro, o que levou o Talibã e os próprios negociantes a conter a atividade para preservar dinheiro.

“A demanda”, afirmou Enayatullah, “está alta demais”. O Talibã ganhou a guerra no Afeganistão, e seu prêmio poderá ser uma crise econômica. O grupo foi cortado do sistema bancário internacional e das fontes anteriores de financiamento no país, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o governo dos Estados Unidos. A ajuda estrangeira era responsável quase pela metade do PIB afegão.

Sem outras fontes de dinheiro, milhões de afegãos poderiam perder o que ganharam, gradualmente, ao longo das últimas duas décadas. E as secas no país já ocasionam alto risco de fome. “Temos conflitos, temos guerras. Esse é mais um problema”, afirmou Shah Mehrabi, membro da diretoria do banco central do Afeganistão. “Haverá uma crise financeira, e isso empobrecerá ainda mais as pessoas.”

Muito antes do Afeganistão ter instituições formais, como os bancos, o hawala já existia. Milhões de afegãos sem acesso ao sistema bancário formal usavam o hawala para enviar e receber pagamentos, assim como trabalhadores migrantes e outras pessoas ao redor do mundo.

O hawala funciona sob a premissa de que pessoas querem mandar quantias equivalentes de dinheiro entre duas localidades. Empréstimos e transferências são registrados no sistema, mas o dinheiro não tem de mudar de mãos. Essas características facilitam sonegação de impostos, pagamentos de propinas e lavagem de dinheiro obtido ilegalmente.

O hawala era uma necessidade na época em que o Afeganistão foi liderado pelo Talibã, antes da invasão americana de 2001, quando o dinheiro de fontes ilícitas fazia as engrenagens do país se mover. Somando-se ao hawala, o ópio produzido pelos vastos campos de papoula e o tráfico da droga trazia ao Afeganistão dinheiro de fora, o que compensava os fracos negócios. Como grupo insurgente, o Talibã se financiava também taxando produtos contrabandeados, como televisões e combustível, em transações frequentemente bancadas por meio do hawala e o comércio de droga.

Mas o Afeganistão de 2021 é um país transformado. A economia, apesar do crescimento instável ao longo da década passada, é cinco vezes maior do que em 2000. A eletricidade, que não chegava à maioria das regiões, agora é facilmente encontrada no país. Smartphones e acesso à internet são comuns.

O dinheiro estrangeiro ajudou. Ao longo das duas décadas passadas, os EUA gastaram mais de US$ 145 bilhões em projetos no Afeganistão, segundo o governo americano. A maior parte desse montante foi gasta na formação das forças de segurança afegãs, mas o dinheiro também foi usado em grandes obras de infraestrutura e em um fundo de apoio econômico. Mais de três quartos dos US$ 11 bilhões em gastos públicos anuais do governo afegão eram bancados por doações.

Desde que tomou o Afeganistão, o Talibã afirmou que erradicará a produção de ópio. Mas para que o sistema hawala funcione, o país tem que encontrar fontes de dinheiro para facilitar a chegada de linhas de crédito que poderiam retornar ao país. Com aproximadamente US$ 870 milhões em exportações em 2019 — na maioria de tapetes e produtos agrícolas, como figos e alcaçuz — o Afeganistão tem pouco a oferecer em larga escala que possa trazer ganhos comparáveis aos do ópio.

O Talibã poderia buscar apoio de países como Paquistão, Irã e China, que podem ter suas próprias razões para manter relações calorosas com o Afeganistão. O comércio com o Irã já foi retomado, afirmou David Mansfield, consultor independente e especialista em Afeganistão rural, citando imagens de satélite de caminhões de combustível atravessando a fronteira entre os países. Ele estimou que, durante a insurgência, o Talibã foi capaz de levantar mais de US$ 100 milhões por ano taxando informalmente mercadorias vindas do Irã e do sul do Afeganistão.

Mesmo que o Talibã levante montantes muito maiores, isso significaria um retorno ao Estado minimalista como na década de 1990. “Crise econômica, desastre humanitário, mais refugiados”, afirmou Mansfield. “Por outro lado, há uma parte da população afegã que experimentou certo grau de transformação nos 20 anos recentes, sua vida melhorou.”

O sistema hawala, apesar de essencial à vida no Afeganistão, não bastará. Enquanto muitas transações hawala existem somente nos registros, elas são bancadas, em última instância, pelo dinheiro vivo dos negociantes do sistema, chamado hawaladars. No Afeganistão, afirmam especialistas, os hawaladars usam regularmente a moeda local, o afghani, para comprar dólares americanos do banco central do Afeganistão, transações que podem ajudar a estabilizar o valor do afghani.

“Os hawaladars não fazem distinção”, afirmou Haroun Rahimi, professor assistente de economia e direito comercial da Universidade Americana do Afeganistão que estuda o sistema hawala. “Se você for um cidadão que precisa mandar dinheiro dos EUA para sua família dar uma festa de casamento, é bem-vindo. Se você for um terrorista buscando financiar um ataque em Cabul, é bem-vindo.”

No Afeganistão, o sistema é responsável por mais de três quartos da atividade comercial, segundo algumas estimativas, apesar dessas movimentações financeiras serem difíceis de rastrear, em razão de sua natureza.

“O poder político e econômico da indústria hawala eclipsa dramaticamente o sistema bancário formal”, afirmou Alex Zerden, que foi adido financeiro do Departamento do Tesouro na Embaixada dos EUA em Cabul entre 2018 e 2019. “Os hawaladars conseguem mandar dinheiro para o exterior e receber dinheiro do exterior com muito mais rapidez do que o sistema bancário formal.”

Mas o banco central não pode acessar as reservas que mantém fora do país, e a vida financeira básica no Afeganistão vai mal. O preço da farinha aumentou mais de 10% em relação à semana passada, enquanto açúcar e ovos aumentaram 20%, afirmou Mehrabi, citando dados do banco central.

Sob o Talibã e seu novo presidente do banco central, os 12 bancos públicos e privados do país foram ordenados a abrir as portas no domingo. Desde então, filas de cidadãos ávidos para sacar seu dinheiro dobram esquinas e atravessam vias. Limites sobre os saques foram estipulados.

As novas regras bancárias não permitem que empresas saquem dinheiro, então, salários e contas estão sendo pagos por transferências bancárias, que também estão sujeitas a limites. Muitos funcionários públicos do governo anterior perderam os empregos, assim como muitas pessoas que trabalhavam para os militares americanos e outros governos estrangeiros, organizações sem fins lucrativos e empresas de comunicação.

Quando o Banco Pashtany abriu as portas após quase duas semanas fechado, no domingo passado, os clientes faziam fila diante das agências, afirmou Ahmad Javed Wafa, diretor executivo da instituição, que está atualmente em Istambul. O banco dele acomodará as demandas diárias dos clientes por dinheiro enquanto o banco central, que guarda grande parte desse montante, conseguir manter seu fluxo de entrega, afirmou Wafa. Mas em algum momento o banco central ficará sem dinheiro.

Apesar de o Talibã estar atento e cauteloso em relação aos negociadores hawala desde que tomou o poder, o grupo deverá buscar um acordo para garantir o comércio, em troca de novos canais de financiamento.

“A economia informal”, afirmou Wafa, “é a única fonte de sobrevivência para o Talibã”.

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