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Entenda a relação entre a guerra da Crimeia e o conflito atual na Ucrânia

No passado, como hoje, a corrupção prejudica condições na linha de frente; ninguém acredita no governo.

Pense numa guerra em que uma das poderosas máquinas militares do mundo, a Rússia, em busca de expandir as fronteiras ao sul, ataca, na região próxima à Crimeia, uma nação muito mais frágil. Analistas, em todo o planeta, apostam em uma rápida e devastadora vitória de Moscou. Mas, então, as coisas começam a dar errado. As forças defensoras, motivadas, oferecem uma resistência surpreendente, ao passo que os russos se mostraram hesitantes e incompetentes. As extensas linhas de suprimento, vindas do norte, são alvo de ataques e, atoladas na lama, não dão conta de levar os alimentos e as munições para a linha de frente. As armas russas são antiquadas e inferiores às dos defensores, supridos por potências ocidentais como Itália, França e Reino Unido.

Se a descrição acima parece se referir à atual guerra na Ucrânia, era na verdade na Guerra da Crimeia, ocorrida há um século e meio, em que eu estava pensando. Travada entre o império russo e o turco-otomano, começou em outubro de 1853, e se arrastaria por quase três anos. Foi a mais sangrenta guerra no Ocidente, entre as napoleônicas e a 1.ª Guerra Mundial. E não foi fácil para os turcos e seus aliados europeus (a guerra da Crimeia foi o cenário de um dos mais notórios fracassos da história militar britânica, a batalha de Balaclava, com a tal “Carga da Brigada Ligeira”, que renderia filmes). Mas, quando terminou, o resultado final foi a derrota dos exércitos do czar. Na trágica contabilidade daquele conflito, os invasores enterraram pelo menos 450 mil soldados, enquanto o país atacado e seus aliados perderam menos da metade disso. Um jovem oficial russo servindo nas fileiras russas, de nome Leon Tolstoi, usaria suas experiências naquela guerra para escrever os Contos de Sebastopol e, anos mais tarde, Guerra e Paz.

Como no passado, o atual exército russo, antes da invasão da Ucrânia, causava reverência e medo. E, ao atacar um oponente mais frágil, levou a maior parte dos estudiosos a apostar numa vitória relâmpago. No Brasil, por exemplo, o Centro de Doutrina do Exército previu que Kiev cairia em dez dias. Por que se errou tanto? É claro que (de novo, como no passado) houve um apoio decisivo de potências ocidentais ao país atacado. É também verdade que os ucranianos se mostraram eficientes e combativos. Mas a história, que quase todos os analistas ignoraram, talvez possa trazer algumas respostas. Para começar, ela vai mostrar que a Rússia jamais foi invencível.

Pois, se é verdade que no século 19 os russos venceram Napoleão (e não o fizeram sozinhos) e, no século 20, derrotaram Hitler (e, novamente, não estavam sozinhos), é também verdade que, depois da Crimeia, os russos tomaram uma verdadeira sova do Japão em 1905, e que as gigantescas baixas sofridas na 1.ª Guerra Mundial (1914-18) levariam à queda do czar e à Revolução Bolchevique. Da mesma maneira, já no fim do século 20, os russos sofreriam tamanhos reveses, no atoleiro do Afeganistão, que muitos analistas consideram aquela aventura fracassada como a principal causa do esfacelamento da União Soviética. Ou seja, se ao longo da história a Rússia venceu guerras importantes, ela também sofreu derrotas igualmente importantes. E hoje, como no passado, o prestígio militar russo sofreu um forte abalo depois que as guerras começaram.

A história da Guerra da Crimeia e os atuais eventos na Ucrânia têm ainda mais pontos em comum e, de novo, chama a atenção o fato de pouca gente ter notado e procurado concluir algo a partir disso. Duas boas exceções foram o jornalista Greg Myre, no portal norte-americano NPR, e o estudioso Ted Widmer, no jornal inglês The Guardian. Se as semelhanças entre as atuações russas em duas guerras separadas por cento e cinquenta anos fossem apenas geográficas, não valeria a pena nos aprofundarmos no tema. Mas são mais do que isso. Mais ainda: pode-se argumentar que, na Crimeia, já estavam presentes muitos dos elementos que ajudam a entender as atuais dificuldades russas na Ucrânia.

Putin, mais do que apenas um líder autoritário, já disse que pretende ser a reedição do mais emblemático dos czares, Pedro, o Grande (1672-1725), o principal responsável por fazer da Rússia, de um remoto e inexpressivo reino asiático, uma potência europeia. Só que a guerra da Ucrânia mostra que Putin tenta, de fato, imitar Catarina, a Grande (1729-96), futura sucessora de Pedro. Pois foi no reinado dela que os russos começaram a olhar com mais atenção para o Sul. Até aquele momento, o foco do país era o Báltico (em cujas margens Pedro mandou construir São Petersburgo). Mas basta olhar o mapa para se perceber que o Báltico é pequeno, cheio de curvas e compartilhado por muitas nações, com uma estreitíssima saída para o Atlântico, espremida entre Alemanha, Suécia e Dinamarca.

Como a Rússia fica “nos fundos”, a vulnerabilidade do país a um eventual bloqueio marítimo era considerável. No Sul, por outro lado, estava o Mar Negro, ligado ao Mediterrâneo pelo estreito do Bósforo. O domínio do Negro, portanto, poderia fazer da Rússia uma potência Mediterrânea. E a península da Crimeia, que ao longo de milênios pertencera a gregos, fenícios, romanos, godos, hunos, bizantinos, genoveses etc., naquela época era dominada pelos tártaros, vassalos do sultão de Istambul. Em alguns anos, misturando diplomacia, corrupção de líderes, migrações forçadas e ações armadas, liderados pelo príncipe Potemkin, braço direito e amante de Catarina, os russos foram conquistando a região. Cidades hoje presentes no noticiário da guerra, como Sebastopol, Mariupol e Odessa foram construídas naquela época.

Os russos não pretendiam parar e, se os principais prejudicados eram os turcos, as potências ocidentais se preocupavam com a expansão, no Sul e nos Bálcãs, do Império dos czares. Como acontece agora, era gigantesca a desconfiança mútua entre os corpos diplomáticos ocidentais e russo: Moscou via o Ocidente tentando cercear e minar a Rússia, o Ocidente via a Rússia pretendendo se expandir a todo custo. Até que, em 1853, sob o pretexto de proteção de cristãos ortodoxos, os russos atacaram a Crimeia, mas não contavam com a aguerrida resistência dos turcos e, muito menos, com a intervenção de França, Reino Unido e Itália. Ainda que, como agora, as forças russas fossem numericamente superiores, a esquadra britânica logo impôs o domínio no mar; os soldados franceses lutavam melhor; as armas dos aliados eram superiores (pois a Rússia não chegara, ainda, à Revolução Industrial); os exércitos ocidentais, principalmente no nível do oficialato médio, eram mais profissionais; os aliados eram abastecidos por mar, sem contratempos, ao passo que os russos dependiam de tropas de mulas para trazer munição e alimentos por mais de mil quilômetros, pois não havia ferrovias. Guardadas todas as diferenças que um século e meio impõe, trata-se de um quadro bastante parecido com o que ocorre hoje.

Mas há mais um elemento a aproximar as realidades dos dois conflitos, que é o profundo autoritarismo vigente na Rússia, o único país ocidental a jamais ter experimentado uma verdadeira democracia. A Revolução de fevereiro de 1917, que derrubou o czar com um projeto liberal, só viveu, aos trancos e barrancos, até outubro daquele ano, quando os bolcheviques tomaram o poder. E o fim da União Soviética, em 1991, deu espaço a uma frágil democracia que perdurou apenas até que Putin fosse eleito, em 2000, e começasse a solapar, por dentro, as instituições.

O autoritarismo, aqui, não é uma abstração sem consequências. Ele dá espaço a elevadas doses de corrupção, presentes na promoção de alguns oficiais, em detrimento de outros, ou na compra de equipamentos e suprimentos muitas vezes superfaturados e com qualidade inferior, como apontou a pesquisadora Polina Beliakova. Algo que chama a atenção, em Guerra e Paz, é como Tolstoi descrevia as batalhas. Segundo ele, o que reinava era o caos absoluto, no qual os generais de nenhum dos lados tinham noção, de fato, sobre o que estava acontecendo. Isso podia ser verdade às vezes, mas, se o acaso contasse sempre, os franceses de Napoleão não teriam vencido praticamente todas as batalhas nos anos anteriores à invasão da Rússia. Minha hipótese é que a visão de Tolstoi foi moldada por sua experiência na Crimeia, ao servir no desorganizado, atrasado e ineficiente exército russo.

Em 1853, como em 2022, os russos podiam contar, principalmente, com as intermináveis dimensões do país e um grande estoque humano para produzir soldados; mas hoje, como antes, os generais russos se comunicam mal com os oficiais médios, aos quais dão pouca autonomia. No passado, como hoje, a corrupção é generalizada e prejudica as condições na linha de frente. Então, como agora, os armamentos reluzem mais nas paradas militares do que nos campos de batalha; no século 19, como no 21, a população civil e os soldados sofrem com a censura dos meios de comunicação, pois uma coisa é, numa guerra, manter determinadas informações em segredo, e outra, bem diferente, é ninguém mais acreditar no que o governo fala. Nas guerras da Crimeia e da Ucrânia, a melhor coisa que os militares russos poderiam ter feito para manter seu prestígio era não as terem começado. Na Crimeia eles perderam; na Ucrânia não sabemos qual será o desfecho, ainda que os russos estejam apanhando, pois, no fim das contas, eles ainda têm muitos recursos, entre os quais o arsenal nuclear. Mas, mesmo que ainda vençam, com todos os reveses que têm sofrido, o prestígio sairá bem arranhado.

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