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Mais de 150 mil fogem por dia da guerra na Ucrânia

Invasão da Rússia já levou mais de 3,3 milhões de pessoas a sair da Ucrânia em pouco mais de 3 semanas.

À 1h da manhã, Uliana, de apenas 4 anos, protesta de ser acordada e ter que colocar roupa para suportar o 0ºC que faz na estação de trem de Przemysl, na Polônia, porta de entrada de metade dos mais de 3 milhões de refugiados que já deixaram a Ucrânia nos últimos 22 dias de conflito. Sua mãe, Viktoria Yaremenko, de 24 anos, suspira com a sensação de estar em solo seguro.

“Bem... agora sou oficialmente uma refugiada; ninguém quer chamar a si mesmo de refugiado, mas certamente me dava muito mais medo permanecer na minha cidade, próxima a Sumy, do que enfrentar esta viagem”, conta.

Órfã desde a adolescência e trabalhando em uma empresa de suporte técnico internacional, Viktoria, ou Vika, como prefere ser chamada, é mais uma personagem de um dos maiores êxodos da história gerado pela invasão russa na Ucrânia. Além dos milhões de refugiados que se espalham pela União Europeia (UE), a agência da ONU para refugiados (Acnur) calcula em 1,85 milhão de pessoas deslocadas internamente na Ucrânia, além de 12,65 milhão de afetados diretamente pelo conflito.

A maioria destes deslocados concentram-se em Lviv, sexta maior cidade ucraniana, localizada no oeste do país e ponto de passagem para muitos, e porto seguro para outros tantos. Localizada a apenas 60 km da fronteira com a Polônia, membro da UE e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Lviv é a única grande cidade ucraniana que não foi bombardeada ou atacada com mísseis pela potência vizinha.

Os constantes alertas e sirenes antiaéreas – mais comuns desde que a base militar de Yavoriv, a 40 km do centro da cidade, foi atacada no último domingo – no entanto perturbam quem viu e viveu de perto os ataques aéreos.

“Lviv está segura agora, mas de verdade nenhuma cidade na Ucrânia está a salvo de Putin”, lamenta Saida Slobodianuk, ex-moradora da antiga capital da Ucrânia soviética, Kharkiv, que há 22 dias é alvo de intensos bombardeios, fuga massiva da população, e muitos dos que permaneceram, vivendo permanentemente nos túneis do metrô da cidade.

“Kharkiv está completamente destruída; o centro histórico, nossa universidade Karazin; nos últimos cinco anos estava se tornando uma cidade muito bonita e agora só lembramos do som das bombas”, conta.

O cenário se repete em Mariupol. Palco da maior tragédia humanitária desta guerra até o momento, o teatro centenário da cidade foi destruído nesta quarta-feira, 16, enquanto cerca de 400.000 de pessoas permanecem isoladas na cidade, sitiada e feita refém das tropas russas. Comboios foram organizados ao longo das últimas duas semanas para evacuá-la, porém poucos moradores conseguiram de fato deixar a cidade portuária no leste da Ucrânia.

Saida e os filhos passaram os últimos três dias em trânsito entre um trem e outro, passando ainda por Kiev. Vestida completamente com o uniforme da seleção ucraniana, a filha de 9 anos praticava ginástica olímpica na cidade natal. Saida diz esperar que ela consiga continuar se desenvolvendo no esporte o qual a Ucrânia é uma potência.

Conforme as tropas russas lentamente avançam, os subúrbios da capital se tornaram campos de batalha em cidades como Irpin e Brovary, hoje esvaziadas e parcialmente destruídas. Na última semana Veronika Ognieva havia fugido de Irpin com a mãe, atravessando a precária ponte montada sob a antiga ponte que a liga com Kyiv, destruída pelo exército ucraniano para conter os russos.

Após 7 horas na fila, desde às 4h da manhã, ela ainda aguardava sua vez de retirar uma passagem gratuita para a Polônia em companhia somente da mãe. O pai, como todos os homens ucranianos entre 18 e 60 anos, impedidos de deixar o país, ficou para defender a capital.

“Ouvíamos explosões dentro de casa, a cidade se tornou perigosa demais para qualquer um ficar; deixamos para trás nossa casa, dois carros, uma vida confortável e agora nem mesmo sabemos qual trem tomar ou quando chegaremos na Polônia; espero somente chegar na Finlândia, onde amigos poderão me receber”, conta, visivelmente cansada.

Longa jornada

Todos os dias milhares de pessoas se reúnem na estação ferroviária de Lviv na esperança de embarcar em um dos trens de evacuação para a vizinha Polônia, além de Eslováquia e Hungria, que vem recebendo um grande número de pessoas, ainda que menor que a Polônia.

A grandiosa fachada da estação Art Nouveau forma um dramático pano de fundo para o drama humanitário que se desenrolam dentro e fora do edifício, e apenas mais um cenário na longa jornada que os milhões de ucranianos agora sem moradia enfrentam até o destino final de acolhida.

Um fluxo constante de ônibus alugados por dezenas de organizações humanitárias para do lado de fora do terminal oferecendo caronas gratuitas, alimentos, roupas e suprimentos médicos. Os voluntários locais trabalham dia e noite para controlar a multidão e impedir que a situação no salão principal da estação caia no caos.

Nos últimos dias, no entanto, a organização na estação melhorou conforme fica nítido para os responsáveis que o fluxo de pessoas e o próprio conflito não será resolvido tão brevemente. Ainda assim, todos os aproximadamente 15 trens que deixam a estação para países vizinhos saem lotados. São cerca de 20.000 pessoas todos os dias embarcando rumo a destinos onde não falam o idioma e onde terão de recomeçar do zero, sem perspectiva de retornar. A grande maioria da população ucraniana fala somente ucraniano e russo, idioma do agora inimigo que por séculos ocupou o território.

Pouco a pouco a composição pós-soviética vai se enchendo de mulheres, idosos e muitas crianças, que entram após passar pelo controle de militares fortemente armados que procuram os chamados sabotadores russos, lembrando que este é um país em guerra.

“Desde o começo da guerra acabou a Covid-19 na Ucrânia”, brinca a professora de alemão Alla Horobets, que há dois dias havia saído de Kryvyi Rih, cidade no sul do país e no meio do caminho entre dois alvos cruciais dos russos, Mykolaiv – sitiada há cerca de duas semanas, depois que Kherson caiu na mão dos inimigos – e Dnipro, alvo mais recente das investidas.

De fato, ninguém usa mais máscaras nos vagões lotados e abafados, que após uma hora de espera, deixam a plataforma. Passada 1h30, o trem para. “Eles precisam trocar as rodas, porque a bitola dos trilhos poloneses é mais estreita que dos ucranianos, já devemos sair”, explica Alla sob o olhar curioso do neto Alexander Berest, que acompanha a mãe a irmã.

A espera, no entanto, se alonga. As crianças brincam e correm pelo estreito corredor, em clima de férias estendidas. “Não passam nenhuma informação para ao menos nos programarmos, é um horror”, reclama Viktoria conforme passam as horas com o trem parado no meio de algum ponto próximo à fronteira. Os poucos banheiros formam filas e acumulam fraldas – a situação exige que os bebês sejam trocados em meio aos bancos –, absorventes e lixo.

Após 2 horas parado, a viagem segue até uma nova parada no último posto de fronteira da antiga URSS. Os passageiros descem para uma enorme fila para doação de alimentos, chá e água distribuídos no prédio de visual soviético. Após quatro horas de nova espera sem informações, as crianças vão cansando enquanto chega a noite e as temperaturas caem para 0ºC. Poucos continuam fora do trem abafado.

Após 12 horas de viagem para percorrer os 95 km que separam Lviv de Przemysl, os refugiados desembarcam na Polônia, onde são recebidos com alimentos, brinquedos, chá quente, bebidas e artigos de higiene, frutos de doação. “Não há local nenhum para permanecer na cidade; os abrigos estão todos lotados, assim como hospedagens; recebemos nas últimas semanas mais de 10 vezes a população da cidade, é o colapso completo” alerta um voluntário que recomenda que todos tomem o primeiro trem disponível.

Agora acompanhada da nova amiga Liza e seu filho, Viktoria embarca para Katowice de onde espera chegar a Gdansk, no norte da Polônia. Deixa a cidade fronteiriça com um sorriso cansado e a esperança de retomar a vida em segurança para Uliana e seu gato.

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