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Número recorde de cubanos nos EUA supera anos de crises

Cerca de 177 mil cubanos, entre outubro de 2021 e julho de 2022, tentaram entrar em território americano.

De um lado, filas para comprar alimentos, crise energética e piora da situação social com a pandemia. Do outro, a suspensão da obrigatoriedade de visto por parte da Nicarágua e a facilidade para receber asilo nos Estados Unidos. Ligando as duas pontas, a agilidade da comunicação por meio das redes sociais. Isso levou o número de cubanos tentando entrar nos EUA ao recorde de 177.848 até agora no ano fiscal de 2022 (entre outubro de 2021 e julho de 2022).

Foi assim que Renan (nome fictício) deixou Cuba no início deste ano. Sozinho, foi até a Nicarágua, onde conseguiu entrar sem precisar de um visto e, de lá, partiu para o México e os EUA. Outros cubanos contaram ao Estadão que, desde o começo do ano, as formas e o momento de deixar a ilha têm sido temas de conversas nas ruas do centro de Havana. Isso se torna um desafio ao governo de Miguel Díaz-Canel e reforça a dificuldade do governo Joe Biden em lidar com o tema migratório.

“Tenho um amigo que está fazendo um trajeto pela Sérvia até a Europa. Ontem (quarta-feira), ele chegou à Grécia. Outro se refugiou na Costa Rica após passar pela Nicarágua. E outros cubanos, como eu, ainda não tentaram por essas vias porque não querem se separar das famílias e buscam emigrar de forma legal. A cada dia, a gente descobre sobre mais pessoas próximas que conseguiram chegar aos EUA ou estão a caminho”, conta o irmão de Renan, Juan (nome fictício).

O número de cubanos às portas dos EUA de forma ilegal neste ano fiscal já é 4,5 vezes maior do que no ano fiscal anterior (entre outubro de 2020 e setembro de 2021) e analistas acreditam que deve continuar aumentando. “A piora da condição social e econômica, com a pandemia, mais a onda de protestos de 2021 são fatores que levaram à migração que estamos vendo agora”, explica Gabrielle Oliveira, professora em Harvard que realiza pesquisas com famílias de imigrantes.

O cônsul de Cuba em São Paulo, Pedro Monzón, reconhece que a situação na ilha é complexa e avalia a saída dos cubanos. “A situação econômica está muito difícil. Trump adotou diversas medidas que nos prejudicaram. Além disso, ocorreu a pandemia, com falta de medicamentos, e agora temos uma crise internacional, com inflação alta, preços mais altos em todo o mundo. Aqui ninguém passa fome, mas estão se formando filas muito longas. E quando a situação econômica se aperta assim, as pessoas buscam uma forma de sair.”

Monzón também confirma a dificuldade na área energética e atribui parte disso ao embargo americano. “Comprar petróleo está mais caro. Os EUA impuseram barreiras para a entrada de petróleo em Cuba e recentemente tivemos incêndios importantes em Matanzas, que queimou muito petróleo. Isso tudo tem um reflexo, mas o governo está continuamente procurando soluções.”

Maior êxodo cubano ocorreu após a revolução

O maior êxodo cubano em direção aos EUA ocorreu entre os anos 1959 e 1962, quando 248.100 cubanos deixaram a ilha após a vitória da Revolução Cubana. A migração de 2022 supera as ocorridas durante as crises de 1980 – quando o Porto de Mariel foi aberto para aqueles que desejassem sair da ilha e 124.800 cubanos foram em direção aos EUA entre abril e setembro – e de 1994, quando 30.900 cubanos deixaram a ilha entre agosto e setembro na crise dos balseiros.

Monzón acredita que, com uma melhora da situação, muitos desses cubanos devem regressar. “Algum dia, quando a situação econômica melhorar, muitos vão voltar. Porque não foram por questões políticas”, diz o cônsul. Gabrielle Oliveria explica que essa movimentação ocorreu depois de 2013, por exemplo, com as políticas do ex-presidente Barack Obama.

“A mudança mais significativa e impactante com relação aos anos 1980 e 1994 foi o avanço na comunicação. Os celulares não eram tão usados, não existia Twitter, Facebook, Instagram, WhatsApp”, afirma o presidente do Conselho Econômico e Comercial EUA-Cuba, John Kavulich.

Gabrielle Oliveira lembra que os picos de nacionalidades dos imigrantes que chegam de forma irregular aos EUA – entre 2021 e 2022 foram registradas as chegadas massivas de haitianos e venezuelanos, por exemplo – indicam “que existe uma comunicação muito forte nessas redes imigrantes, nas quais as pessoas compartilham caminhos e momentos e estão com esperanças”, mas atribui o recorde cubano a outros fatores.

Ela explica que a viagem de Cuba aos EUA pode chegar a US$ 10 mil e a migração de um país para outro vem aumentando desde 2021, mas o fato de a Nicarágua ter suspendido a necessidade de vistos aos cubanos facilitou a travessia, então “muitos cubanos que iam pela América do Sul ou faziam a travessia complicada por barco (até os EUA), podem agora ir pela Nicarágua.”

Cubanos são atraídos por tratamento diferenciado nos EUA

O outro ponto que atrai os cubanos aos EUA é o tratamento diferente que recebem em comparação a imigrantes de outras nacionalidades. “É considerado um exílio político, desde a Guerra Fria, com cubanos escolhendo os EUA como uma sociedade melhor. A probabilidade de eles conseguirem um green card ou cidadania é muito maior, eles não entram com medo de serem pegos”, diz Gabrielle Oliveira.

Tecnicamente, os cubanos passam pelos mesmos procedimentos de outros imigrantes, mas por conta da política diferenciada, recebem, por exemplo, uma assistência financeira. São US$ 325 ao mês para os adultos e US$ 200 ao mês para as crianças, pelo período de três meses.

“Os EUA são o destino mais procurado porque podem regularizar sua situação em pouco tempo. Além disso, estão perto e podem ajudar suas famílias em Cuba. Agora, ir pela Nicarágua se transformou em um grande negócio, uma passagem pode custar até US$ 4 mil. Por isso, alguns cubanos estão optando por outros caminhos, como pela Europa”, conta Juan, que avalia como sair do país com a família. “Analisei todas as rotas, mas não concretizei nada porque somos eu, minha mulher e nossos dois filhos. Recebemos uma bolsa para estudar na Espanha, mas tivemos os vistos negados alegando que tínhamos pouco dinheiro para nos mantermos lá.”

Se esse é mais um desafio na política migratória de Joe Biden, também coloca em questão o governo do cubano Miguel Díaz-Canel. “A mensagem é que os cidadãos não confiam que ele possa liderar o país para uma vida melhor. O êxodo reforça a narrativa de que o governo de Cuba prefere manter políticas que falham, relacionamentos que falham”, explica Kavulich.

Segundo Monzón, o governo cubano está tomando providências e tem o apoio da população, mesmo depois dos grandes protestos de 2021. “Isso tudo (crise econômica e pandemia) criou o ambiente para as manifestações do ano passado, mas a população não se rebelou contra o governo. Estamos criando melhores condições em Cuba, a juventude está organizada para fazer campanhas para pedir que as pessoas não saiam do país”, afirmou.

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