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O juiz de garantias e as dificuldades momentâneas para sua implementação

Artigo do desembargador Edvaldo Pereira de Moura, que é diretor da ESMEPI e professor da UESPI.

Foto: Marcelo Cardoso/GP1Desembargador Edvaldo Moura
Desembargador Edvaldo Moura

Desembargador Edvaldo Pereira de Moura

Vice-Presidente, Diretor Administrativo do COPEDEM Professor de Direito Penal e Processual Penal da UESPI

O Congresso Nacional, através da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, já sancionada pelo Presidente da República, analisando o Pacote Anticrime, do Ministro Sérgio Moro, instituiu o Juiz de Garantias, criticado e aplaudido por expressivo número de juristas, que atuam no nosso sistema de Justiça Criminal.

O Juiz de Garantias não é invenção brasileira e, de há muito, já existe em países como Alemanha, Portugal, Itália, Chile e outros, com algumas variações, em face das peculiaridades locais, e com alvissareiros resultados.

Com razão, a meu ver, os que afirmam, que esse instituto é um avanço civilizatório, que vem ao encontro dos interesses maiores da sempre seletiva Justiça Criminal, por buscar a preservação do sistema acusatório, adotado pelo Processo Penal Democrático e por se preocupar com a imparcialidade, virtude suprema dos que julgam.

E o que é, então, o Juiz de Garantias?

Ele é, basicamente, aquele magistrado que atua no processo penal, deferindo medidas invasivas e cautelares, como a produção antecipada de provas, a quebra do sigilo, a busca e apreensão, a prisão temporária ou preventiva, a colaboração premiada, a realização de diligências e outras que comprometem, inelutavelmente, a sua isenção para julgar.

Esse modelo de juiz, por força do disposto nos arts. 3º-A, 3º-B e 3ºC, do Código de Processo Penal, com a sua nova redação, está impedido de instruir o processo e julgar o investigado.

Para o Desembargador Federal Ney de Barros Bello Filho, essa alteração legal, “em consonância com o que se faz no mundo ocidental, tem o condão de proteger a imparcialidade do magistrado, que instrui e decide o processo, separando, definitivamente, quem acusa de quem julga e restabelecendo o equilíbrio entre defesa e acusação, no processo criminal”.

Não há missão mais ingente e bela, para aqueles que desempenham, movidos pela vocação e pela responsabilidade funcional, do que a vida magistratural. O julgador, como ensina Carnelutti, citado pelo advogado Júlio Antônio Lopes, é muito mais do que o homem comum. A sua atuação transcende os limites da de qualquer outra atividade e chega a ser tão relevante que se assemelha, para o grande processualista italiano, à do nosso Criador.

Não era por outra razão, como prelecionava tão festejado mestre, “que as antigas civilizações fundiam numa só pessoa, as figuras do sacerdote e a do julgador”.

Essa sacrossanta e nem sempre compreendida atividade jurisdicional, para ser bem exercitada, exige independência, coragem cívica, dedicação, aperfeiçoamento contínuo, verticalidade pessoal e profissional e, acima de tudo, imparcialidade.

Em um Estado Constitucional, jamais haverá julgamento justo, seja no âmbito cível ou criminal, sem que o juiz ofereça às partes em conflito, tratamento igualitário, agindo com absoluta isenção.

No seu bem pensado artigo, o já mencionado desembargador Ney Bello, com a autoridade de magistrado emérito e respeitado, assevera que o Poder Legislativo Federal, ao criar, em boa hora, o juiz de garantias, colocou o Brasil, no concernente ao processo penal democrático, no mesmo patamar dos mais avançados países do mundo.

A rigor, o juiz de garantias, no Estado do Piauí, passou a existir, após ser instituida, a Central de Inqueritos, que viabilizou a Audiência de Custodia, hoje funcionando de forma modelar, especialmente em Teresina.

A Central de Inquéritos, instituída e instalada, repito, na nossa gestão, se inspirou na que existe no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que foi por nós visitado e de onde trouxemos todos os subsídios necessários à sua implementação.

Com a Central de Inquéritos e, depois, com a Audiência de Custódia, a Justiça Criminal, na capital do Piauí, passou a contar, na fase investigativa, com um magistrado, a exemplo do que acontece no Judiciário de São Paulo, e no de várias outras unidades federadas, sempre buscando evitar a quebra da imparcialidade dos juízes criminais, como frisado, impedindo que aquele que decreta certas medidas, como a busca e apreensão, a quebra de sigilo bancário, telefônico e telemático, a prisão temporária ou preventiva, a colaboração premiada e outras, proceda ao julgamento do réu.

A medida é formal e materialmente constitucional, como reconhece, dentre outros, o jurista Lênio Luiz Streck, dizendo, in verbis:

“Começo com uma obviedade tão óbvia quanto obviamente ignorada. Só pode ser inconstitucional o que é contra a Constituição. Isso a gente sabe desde há muito, no Direito Constitucional. Daí a pergunta:

Em que exatamente contraria a Constituição uma figura como a do juiz de garantias, que materializa a própria principiologia processualconstitucional, em âmbito criminal?

É sabido que a Constituição institucionalizou o sistema acusatório e no plano da convencionalidade e dos tratados, o juiz de garantias é uma realidade imposta pela democracia.”

Só vejo um problema, para a implementação de tão notável e benfazeja inovação, tal como concebido pelo Poder Legislativo Federal: a exiguidade do prazo de 30 dias, para que ela passe a funcionar.

Se não há vício de inconstitucionalidade formal ou material, na Lei que criou o juiz de garantias, mas se o Judiciário brasileiro não dispõe de recurso orçamentário, de estrutura adequada e de magistrado em número suficiente, para que a norma criada, entre em vigor, o que fazer, então?

Se há dificuldade momentânea insuperável, em razão da exiguidade do prazo de 30 dias, para o cumprimento da Lei, já sancionada, estaria caracterizada a inconstitucionalidade circunstancial ou progressiva, como defende a Associação dos Magistrados Brasileiros, para que seja implementado o juiz de garantias, medida que já foi enfrentada, em outra situação e em matéria diferente, pelo nosso Supremo Tribunal? A solução estaria na ampliação do prazo para que os tribunais se adequem às exigências da nova Lei?

Creio que sim, pedindo vênia aos que têm posicionamento diferente.

Pelo que sabemos, essa linha de orientação vem sendo defendida pelo CNJ e pelos nossos Tribunais. Aliás, o Tribunal de Justiça do Piauí, pensando assim, já nomeou uma comissão para estudar a matéria e propor a mais adequada e correta solução e resolver o impasse criado com a sanção presidencial, que estabelece tão diminuto prazo, para que a lei sancionada entre em vigor.

Com o advento do juiz de garantias, o processo penal, aos poucos, supera o inquisitorialismo e fortalece o sistema acusatório, preocupado com a imparcialidade dos que exercem a missão de julgar. Essa imparcialidade, no dizer de Faustino Cordon Moreno, é uma garantia da função jurisdicional, ou seja, dos que dizem o direito. Mas embora seja uma importante vitória da cidadania e do sistema processual penal, a ser aplaudida por todos os atores, que atuam na Justiça Criminal, o juiz de garantias não pode ser tido e havido como panaceia para todos os problemas com que se defronta o Judiciário, na esfera criminal. Ele deve ser acompanhado de outros avanços, que sepultem o modelo inquisitivo e o autoritarismo do Direito Penal e Processual Penal.

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

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