
Quando optei por não aceitar o auxílio-moradia, verba indenizatória outrora recebida por magistrados e outras categorias profissionais, por não encontrar nele, após demorada e refletida análise, a pureza substancial da legalidade, da moralidade e da legitimidade, fiz o que me ditou a consciência de cidadão e de magistrado, acostumado com decisões difíceis e pouco simpáticas. Não quis, em nenhum momento, colocar os meus pares, nem as demais categorias, que o recebiam, como usurpadores do bem público, até por saber que todos o percebiam de boa-fé e sem que tenham sobre ele refletido. Se com isso me arrisco a ferir suscetibilidade de quem quer que seja, peço desculpas e explico que o fiz por razões de ordem pessoal, intransferível e por questão de foro íntimo.
Sem querer fazer comparação com a supracitada parcela indenizatória, registro que desde os meus tempos de policial, em Teresina, como delegado de polícia de carreira, titular de várias distritais, acostumei-me a não receber presentes, nem agradecimentos formais, pelo resultado da minha infatigável atuação. Muitos o viam como comportamento deselegante, presunçoso, arrogante ou cabotino.
Não condenei quem não admitia minha posição, até por fazer parte dos meus princípios, respeitar sempre a opinião dos contrários.
Como se sabe, o erro é próprio do ser humano ou como diz a expressão latina, "errare humanum est". Ele é pressuposto da organização judiciária, que instituiu, por isso mesmo, a instância da revisão sobre a do julgamento. Todos nós, às vezes, incorremos em erros, nos enganamos facilmente, supondo que a verdade esteja conosco. Teresa de Calcutá, indagada sobre o que seria a "coisa mais fácil de se verificar", respondeu, sem delonga, que seria cometer engano, como ilustra interessante estrofe de autoria do advogado da União e conhecido intelectual piauiense, Francisco Almeida:
"Enganar-se é a resposta, Pois a raça humana é falível, Mesmo de razão composta, Comete erros banais, Mais que outros animais E de perdoar, não gosta."
Essa foi uma das 23 perguntas feitas e respondidas, por esse anjo do bem, de forma simples, didática e inteligente.
Neste caso especial, o do chamado auxílio-moradia, que me perdoem os que me leram ou me ouviram, repugnava-me, sempre norteado por forte e fina sensibilidade política, tomada a expressão no seu mais legítimo e helênico sentido, ter que receber a supracitada gratificação, sobre a qual sequer incidia o imposto de renda, dos magros cofres do Estado a que pertenço, um dos mais pobres da Federação, com o segundo menor índice de desenvolvimento humano do Brasil, em que a violência e o crime ganhavam proporções de tragédia, e a sua saúde pública atravessava um dos seus momentos mais difíceis, quando eu e minha família já dispúnhamos de excelente moradia e a nossa Administração Pública vinha colocando num longo e tenebroso processo kafkiano, um mísero reajuste salarial para as classes mais sacrificadas, como a dos professores, dos policias civis e militares, dos agentes penitenciários e outras.
Posso até ter caído no ridículo, com o meu ato quixotesco, por alguns mal interpretados, mas, com certeza, não levarei para o meu travesseiro a solidão da culpa que Fiódor Dostoiévski colocou no recôndito da consciência de seu personagem, da obra Crime e Castigo, Raskólnikov, autor de um ato por ele defendido, em determinado momento, como justo, mas que na essência era um crime bárbaro, praticado premeditadamente e com requinte de perversidade.
Como calejado operador jurídico, não vejo nenhuma norma que possa ser tida ou havida como a Porta do edifício da lei no "Processo" de Kafka: intransponível e inquestionável. O bom-senso criou a norma moral que, por sua vez, precede a norma jurídica. O Estado faz e protege a prescrição normativa que interessa a seu arcabouço jurídico, mas o bom-senso é o dom inalterável que herdamos da experiência e da virtuosidade dos sábios, dos santos e dos heróis. É o in hoc signo vinces, que fortalece o nosso ânimo, na batalha do bem contra o mal, do bom contra o mau, como fortaleceu o exército de Constantino, às portas de Roma.
Quando a Justiça não se direciona ao bem comum, ao bem de todos, à universalidade da condição humana, ela se torna um mero instrumento das elites do poder e, por essa razão, perde a essência de sua verdade e do seu valor. O ato jurídico perfeito não é aquele que serve, sem questionamento, aos interesses do Estado ou de um grupo privilegiado, mas o que, depois de realizado, satisfaz à consciência universal.
Confesso, aqui e agora, que desde o dia em que essa verba indenizatória foi colocado em meu contracheque, passei a viver um momento de acentuado constrangimento íntimo, de angústia pessoal e até de revolta, principalmente a partir de quando coordenei, como relator de um processo que tramitava no meu Tribunal, a conciliação entre o Estado do Piauí e os agentes penitenciários da Secretaria de Justiça, que além de enfrentarem uma seríssima rebelião, em várias de suas unidades prisionais, lutavam por uma mísera recomposição salarial a que eles faziam jus, por várias e intercorrentes razões.
Registro, por oportuno, que quando me recusei a continuar recebendo a aludida parcela indenizatória, como frisado, não censurei a Presidência do meu egrégio Tribunal, nem os demais órgãos e autoridades que a admitiam, nem fiz qualquer tipo de reparo ou restrição aos que, de boa-fé, a receberiam. Aliás, nem minha própria esposa, que também é magistrada, concordava comigo.
Mas, no dia em que um ato jurídico, com as vestes e a presunção da moralidade, da legalidade e da legitimidade, não puder ser questionado ou debatido, passarei a enfrentar as minhas insônias e pesadelos, com a tristeza dos desenganados e vencidos.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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