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Por Arthur Teixeira Junior*

Imagem: GP1Arthur Teixeira Júnior(Imagem:GP1)Arthur Teixeira Júnior

“É diretamente proporcional a relação entre ser contra a liberdade de expressão e ter um prontuário pessoal e político de coisas erradas a esconder.” - Carta ao Leitor, Revista Veja, edição 2.368, pg12.

Acabo de receber uma maravilhosa e aguardada cartinha de meu filho Bruno, em viagem de estudos pela África. Bruno acostumou-se a escrever cartas, o que melhora em muito sua escrita, não porque as prefere em detrimento das mensagens eletrônicas, mas em alguns lugares por onde passa, não existe ou é deficitária a internet, ou esta é criminosamente censurada pelos dirigentes locais. Ao invés de comentá-la, preguiçoso que estou hoje, vou transcrevê-la na íntegra:

“Meu Querido Pai,

Continuo a visitar os países da África. Não vai dar para visitar todos, pois são quase 60 países, alguns em guerra, outros tão corruptos que precisamos pagar para entrar, ficar e depois para sair.

Estou em uma republiqueta que nem sequer lembro-me o nome dela. Mas é uma ex-colônia portuguesa e aqui se fala um inglês que pouco se entende e um dialeto usado pela maioria dos dirigentes locais, o Propinipamim. O povo aqui não tem escolas, hospitais, transportes ou moradia, mas elegem sempre o mesmo cacique ou algum parente por ele indicado, pois há dez anos que os habitantes paupérrimos recebem mensalmente do Governo um cacho de bananas e um potinho com farinha. A maior parte se satisfaz com isto e não trabalha mais. Assim sendo, não reclamam mais do desemprego.

Neste ano teremos aqui uma grande festa tribal, com várias outras nações amigas mandando seus melhores lutadores para um sangrento combate. Em diversas cidadelas construíram grandes ocas para receberem os visitantes. Já gastaram cinco vezes mais do que o previsto, mas muita coisa dos projetos iniciais não será feita, principalmente aquelas obras ligadas a infraestrutura que ficariam, findados os combates, para o povo local. Desviaram o dinheiro que seria usado na educação e saúde, metade para as obras e a outra dividida entre os corruptos que infestam todos os níveis de poder.

Continuo hospedado em um dos palácios construídos com o dinheiro do povo, local onde faz anos comandam os mesmos dirigentes, somente mudando as cadeiras que ocupam. O cacique de hoje será o chefe da cozinha na próxima gestão. O chefe cozinheiro passará a ser o novo chefe financeiro (embora não domine qualquer operação matemática) e este será o futuro cacique. Tem sido assim por décadas.

Onde estou faz lembrar aquela piada do inferno brasileiro: um dia falta pão, noutro tem o pão mas não manteiga, quando tem pão e manteiga, falta o leite. E quando tem tudo, o garçom está de licença médica. O café é ótimo, pelo menos é o que dizem os bajuladores oficiais. Quem discordar é preso e enforcado. Por falar em licença médica, tem um vice-cacique que caiu em desgraça e foi pego com a “mão na cumbuca” (na verdade, as duas mãos e um pé), embora os caciques soubessem que ele fazia isto a pelo menos dez anos. Ninguém mais o viu, pois completou seis meses de licença médica.

Quando entregam alguma coisa aqui no palácio, tem um servo que carimba o recibo da mercadoria. Estamos sem poder receber suprimentos, pois não compraram uma tinta para o carimbo que custa cerca de quatro dólares americanos, ou Cp$ 10,00 - “corrupts”, a moeda local.

Aliás, aqui não se pode reclamar de nada. Tem um compositor oposicionista que faz umas musiquinhas que todos dizem que não ouvem, mas quando sai um novo disco, esgota-se em minutos e imediatamente todos cantarolam a nova composição pelos corredores do palácio. Daí os caciques ficam “putos”, pensando que a música falava deles (lembra-se da “moça feia” em “A Banda” de Chico Buarque?). No mês passado tinha uma musiquinha que falava que a TV na China não funcionava. Pois não é que os caciques forçaram um chefe tribal babão a fazer uma reclamação formal ao Tribunal de Bons Costumes, alegando que a musiquinha referia-se ao seu órgão genital? No Brasil isto chamava-se “passar recibo”. Continua assim?

Para evitar que o povo pobre continue a encher o saco no Palácio Presidencial, resolveram fazer Palácios Regionais nas savanas desertas do interior do país. A idéia parece boa, em princípio, mas nada aqui é de graça: eles alugam, por valores bem acima do mercado (na aldeia de Chain chegou a Cp$ 9.000/mês ¬), ocas de amigos do cacique e depois gastam fortunas reformando-as para servir aos emissários oficiais. Com o dinheiro que gastam na reforma, dava para construir uma oca nova e mais bonita. Depois de alguns meses, mudam o Palácio Regional para outro local, e o amigo do cacique, além de ter recebido alugueres fora da realidade local (lembre-se que é na savana do interior, não em um bairro nobre da Capital), recebe a oca todinha reformada.

Aqui onde estou hospedado, trabalham alguns escravos capturados aos inimigos em batalhas anteriores, que fazem o trabalho que os nativos acham desimportantes. Embora o trabalho seja duro e nada recebam por isso, as vagas para escravo Real são disputadas a tapa, pois aqui pelo menos eles fazem duas refeições por dia e no final do ano recebem uma cesta com produtos básicos, como aipim, farinha, sal, jornais velhos, e sabão de gordura animal.

Escravos indicam outros escravos para ocuparem as vagas que vão surgindo. Isto dá margem a boatos de que alguns chefes tribais assediam as escravas em troca de estabilidade e privilégios. Algumas escravas mandam mais do que um nativo liberto. Uma, vangloria-se de ter um filho do “Cat’s Eye”, antigo interventor da época da Colonização Portuguesa por aqui.
Bem, papai, vamos terminando, pois o papel é racionado e o comprador tribal adquiriu, por um preço absurdo, um monte de canetas que não escrevem. Temos impressoras, mas falta um insumo que não posso falar qual é, pois arriscar-me-ia ser deportado (usei a mesóclises, como o senhor ensinou-me).

Um beijão, saudades, seu filho

Bruno”

* Arthur Teixeira Junior é funcionário público

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

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