Fechar
Blog Opinião
GP1

Sílvio Santos – ressurgente de um sonho greco-sírio

Desembargador Edvaldo de Moura, membro da Academia Brasileira de Letra da Magistratura - ABLM.

Edvaldo Pereira de Moura

Desembargador do TJ-Piauí. Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Membro da Academia Brasileira de Letra da Magistratura – ABLM. Vice-Presidente do IMB e Professor de Direito Penal e Processual Penal da UESPI

“O pavor de perder a popularidade ou de não conquistá-la não deve inibir o juiz, pois, o que se tem verificado é que a justiça se engrandece com a renúncia às formas populares de sonora repercussão do nome".

Em 1924, um jovem casal judeu sefardita singrou as águas do Atlântico rumo às Américas e desembarcou no antigo Cais Pharoux, do Rio de Janeiro. Ele, com 27 anos de idade; ela, no verdor dos seus 17 anos. Alberto Abravanel era da Tessalônica, uma das quatro regiões gregas da Macedônia; Rebeca Caro era de Esmirna, hoje Izmir, cidade portuária da Turquia.

Naqueles dias, a República Velha vivia o governo nervoso do mineiro Artur Bernardes, sustentado pelo regime de estado de sítio, que permaneceu até passar o cargo a Washington Luís, mais infeliz ainda, porque sairia da sede do governo preso por interventores militares a soldo de Getúlio Vargas, já pronto para implantar a ditadura do Estado Novo no país.

Isso porém, no distante interesse daquele casal estrangeiro, soava apenas como animação de rua, com foguetes e fanfarras. Pois nada no mundo poderia superar os momentos infernais e os horrores indescritíveis, que os fizeram procurar refúgio em qualquer lugar, desde que estivessem bem longe dos momentos angustiosos e perversos que os forçaram ao desterro.

O que viu e o que trazia Alberto Abravanel, em sua retentiva destroçada?

Salônica ou Tessalônica é a segunda maior cidade da Grécia e a principal cidade da região grega da Macedônia. Sob domínio do Império Otomano até 1912, a cidade distinguia-se pela população maioritariamente judaica de origem sefardita, em consequência da expulsão dos judeus da Espanha, depois de 1492. Salônica foi o principal “prêmio” da primeira Guerra dos Bálcãs em 1912, quando se tornou parte da Grécia. Durante a Primeira Guerra Mundial, um governo provisório foi ali estabelecido e dirigido por Elefthérios Venizélos, que tornou-se aliado dos britânicos e franceses, contra a vontade do rei, que era favorável à neutralidade da Grécia. A maior parte da cidade foi destruída por um incêndio de origem desconhecida, em 1917. O fogo teve como consequência a diminuição pela metade da população judia, que emigrou depois de terem suas casas e seus meios de subsistência destruídos. Muitos foram para a Palestina. Alguns foram no Expresso do Oriente para Paris. Outros foram para a América.

Gregos exilados de Esmirna e de outras áreas da moderna Turquia, em 1922, seguindo o derrotado exército grego que invadiu a Ásia Menor, chegaram à Salônica e influenciaram a cultura da cidade. Elefthérios Venizélos proibiu a reconstrução do centro e apesar dos esforços gregos, quase todos os habitantes judeus da cidade foram assassinados no Holocausto durante a ocupação alemã entre 1941 e 1944.

Por outro lado, o que testemunhou e traumatizara a alma sensível da jovem Rebeca?

O incêndio de Esmirna. Rebeca presenciou, com seus quinze anos de idade, o incêndio criminoso, que hoje é considerado o maís terrível acontecimento da história do Mediterrâneo. Testemunhas oculares afirmam que o incêndio começou em 13 de setembro de 1922 e durou até o dia 22 daquele mês. Começou quatro dias após os militares turcos capturarem a cidade em 9 de setembro, encerrando a Guerra Greco-Turca. Estima-se que as mortes de gregos e armênios, devido ao alcance do fogo chegou à casa dos 125.000.

Cerca de 80.000 a 400.000 gregos e armênios lotaram o cais para escapar do incêndio, mas foram forçados a permanecer lá em condições adversas por quase duas semanas. As tropas turcas e irregulares começaram a cometer massacres e atrocidades contra a população grega e armênia da cidade, antes do início do incêndio. Muitas mulheres foram estupradas. Dezenas de milhares de homens gregos e armênios foram, posteriormente, deportados para o interior da Anatólia, onde a maioria morreu em condições mais adversas.

Consultando os arquivos eletrônicos da Fundação Fernando Henrique Cardoso, vamos encontrar, sobre o fenômeno das migrações internacionais, o seguinte:

As pessoas migram por várias razões, incluindo: causas naturais, como fenômenos atmosféricos (chuvas intensas, furacões); Causas sociais, como guerras, crises econômicas, perseguições políticas, étnicas ou culturais; Causas demográficas e econômicas, como padrões laborais deficientes, desemprego elevado e saúde geral da economia de um país; Causas relacionadas a estudos, em busca de trabalho e melhores condições de vida; Problemas de países conflitivos, como Síria, Congo, Sudão, Nigéria, Afeganistão, Ucrânia, Quirguistão, Mianmar, Paquistão.

O Relatório Mundial sobre Migração, da ONU, revela que o problema migratório mundial, hoje, é caracterizado por um aumento do número de migrantes internacionais e de pessoas deslocadas devido a conflitos, violências, desastres e outros motivos. Em 2020, o número de migrantes internacionais era de 281 milhões, o que representa um aumento em relação a 1970, quando eram 84 milhões.

Nada menos de 1% da humanidade encontra-se deslocada de suas pátrias. No que nos pertine, a Venezuela, nossa vizinha no extremo norte, representa o terceiro maior grupo populacional do mundo, nessa adversidade. Cerca de 8 milhões de pessoas já migraram do país para escapar da insegurança econômica, fome, violência, falta de medicamentos e serviços essenciais geradas por um governo autocrata, apegado a qualquer custo ao poder. Essa, que é considerada a maior crise humanitária da América Latina, tem impacto direto no Brasil, onde 568 mil já estão regularizados, 6,6 mil refugiados em abrigos de Roraima e milhares vivendo de pequenos serviços e da caridade pública nas ruas.

O Brasil, desde suas origens, tem sido um porto seguro para todos os que nele buscam um lugar ao Sol. A relação nominal de sobrenomes estrangeiros, vindos de todos os cantos da Terra, trazendo sua ajuda para a melhoria do nosso país, é imensa. Cientistas, políticos, artistas, esportista, juristas, financistas, religiosos e tantos outros segmentos, foram acolhidos como filhos e aqui enraizaram os seus descendentes.

O Brasil é o único país do mundo que foi governado por um cigano: o Presidente Juscelino Kubistchek. O cientista do século XX, César Lattes, que por pouco não ganhou o Prêmio Nobel de Física, era filho de pais italianos; Mário Schenberg, pernambucano, um dos maiores astrofísicos do mundo, filho de judeus russos nascidos na Alemanha, o maior físico teórico do Brasil; Ernst Wolfgang Hamburger (alemão, radicado em São Paulo, cientista de prestígio mundial, expatriado pelos nazistas e perseguido no Brasil durante o governo Garastazu Médici (este também filho de imigrantes italianos), juntamente com sua esposa, a física e professora da USP, Amélia Império Hamburger; mesmo verificando apenas um campo de conhecimento, a lista é imensa.

Senor Abravanel, conhecido pelo nome artístico de Sílvio Santos, era o filho primogênito dos acima referidos imigrantes judeus sefarditas, Alberto Abravanel e Rebeca Caro. Quando chegaram ao Brasil, passaram a residir na Lapa, bairro da região central da cidade. Mais conhecido como o bairro boêmio, por excelência, da então Capital Federal. Foi lá que, no dia 12 de dezembro de 1930, nasceu o empresário e apresentador de televisão, que seria, até o recente dia 17 de agosto, a maior referência na história das comunicações no Brasil.

Não foi nosso propósito escrever sobre a batalha travada por Sílvio Santos para chegar onde chegou. Todos os veículos de comunicação do Brasil, desde a morte do apresentador do SBT, já vem fartando todos nós de detalhes dos 93 anos de sua riquíssima existência. Lembramos, apenas, que, graças à formação e aos costumes milenares de seus pais, totalmente diferente dos nossos, o jovem Sílvio, não foi atraído pelos encantos da malandragem carioca.

Os judeus sefarditas são um grupo étnico e religioso que integra a história europeia. Eles são descendentes de judeus que viveram na Península Ibérica durante a Idade Média, principalmente na região da Andaluzia. A própria palavra sefardita significa Espanha, em hebraico.

A história dos sefarditas começa no século VIII, quando a Península Ibérica foi conquistada pelos mouros, um povo islâmico. Os mouros eram bastante tolerantes em relação a outras religiões, o que resultou em uma grande presença judaica na região. Os sefarditas eram conhecidos por sua cultura próspera e contribuíram significativamente para a economia e a ciência da época.

No século XV, a Península Ibérica passou por um período de perseguição aos judeus, conhecido como Inquisição Espanhola. Muitos judeus foram queimados em praça pública ou forçados a se converter ao catolicismo ou deixar a região. Aqueles que deixaram a Espanha e Portugal, levaram consigo sua cultura e práticas religiosas, tornando-se conhecidos como judeus sefarditas. Alguns se estabeleceram em outros países europeus, enquanto outros migraram para o norte da África e o Oriente Médio. Os judeus sefarditas se espalharam pelo mundo, em busca de liberdade religiosa e oportunidades.

Os sefarditas são conhecidos por suas contribuições em diversas áreas, como literatura, medicina, comércio e filosofia. Judeu sefarditas foram Baruc Spinoza, filósofo holandês, considerado um dos pensadores mais importantes da era moderna (este, seria depois expulso da ordem judaica); Issac de Pinto, filho de judeus sefarditas portugueses, nascido na Holanda, economista e financista, conselheiro do Príncipe Guilherme IV da Holanda, quando convenceu àquele governante a participar da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais; Esther Glickstein Rose, a primeira mulher a se formar em medicina na Universidade de Toronto, no Canadá.

Em postagem na internet feita, Edison Veiga registrou: “No 11° arrondissement de Paris, uma congregação judaica ortodoxa construída em estilo modernista e inaugurada em 1962 é chamada de Sinagoga Dom Isaac Abravanel. Para brasileiros, o sobrenome imediatamente remete a uma das maiores personalidades da TV, o apresentador e empresário Sílvio Santos, cujo nome oficial era Senor Abravanel. E se a biografia de Sílvio Santos teve contornos de superação, de quem ascendeu financeira e socialmente, enfrentando adversidades, a trajetória de seu antepassado ilustre, Isaac Abravanel (1437-1508), também foi rica em inúmeros episódios.”

O próprio Sílvio Santos demonstrava orgulho de suas raízes, dizendo que seu antepassado foi o homem que equilibrou as finanças de Portugal, depois foi chamado pelos monarcas espanhóis, Isabel e Fernando, para fazer o mesmo com as finanças da Espanha. Ele lembrou que os judeus foram perseguidos pela inquisição católica e Issac Abravanel, mesmo convidado pelos reis espanhóis para ficar, preferiu exilar-se junto a seu povo. Porém, enfatizou que seu ancestral “deu dinheiro para que o navegador Cristóvão Colombo viesse descobrir a América”. E é verdade registrada pela história oficial.

Por sua vez, Isaac Abravanel era descendente de Issac ben Judah Abravanel, nascido em Lisboa, que, conforme alguns registros, foi um filósofo, comentarista biblico e financista judeu português.

Escrever sobre Sílvio Santos não foi um mero gesto para nos associarmos, simplesmente, aos que ainda fazem seus justos elogios post-mortem. Foi a necessidade de pensar muito mais sobre a questão da emigração. Nenhum problema dos nossos dias alcança tão alto grau de gravidade, como o do emigrante no mundo. Nenhuma situação política, social e econômica, que possa suscitar as nossas preocupações, sofre tanto quanto a emigração, a crueza, a perversidade e as injustiças, sem foros nem tribunais, resultadas da negação sofrida por ela, dos mais comezinhos princípios dos direitos à vida.

No dia 2 de setembro de 2015, um policial paramilitar turco resgatou nos braços o corpo de uma criança encontrada numa praia de Bodrum, na Turquia, depois de duas embarcações com imigrantes naufragaram em alto-mar. A foto do menino gerou consternação no mundo inteiro. O jornal britânico Independent, destacou em sua edição: “Se estas imagens com poder extraordinário de uma criança síria (dois anos de idade), morta, levada a uma praia, não mudarem as atitudes da Europa, com relação aos refugiados, o que mudará? As fotos são um forte lembrete de que, enquanto líderes europeus progressivamente tentam impedir refugiados e imigrantes de se acomodarem no continente, mais refugiados estão morrendo em seu desespero para escapar da perseguição e alcançar a segurança.”

Agora, vem daí o lado mais aviltante da barbárie contra a condição humana: "A travessia do Mediterrâneo é feita em botes ou em embarcações superlotadas, sem os mínimos requisitos de segurança, por traficantes de pessoas. A viagem pode custar mais de dez mil reais por pessoa, o que torna o negócio altamente lucrativa, se uma única embarcação pode render ao traficante um milhão de reais.

Aquela bela criança turca de dois anos de idade, cabelos recém-aparados, roupa e sapatos alinhados, prontos para conquistar uma nova vida, juntamente com seus pais, não teve o mesmo destino de sua conterrâneo Rebeca Caro, que, cheia de esperanças e alívio, aportara noventa anos antes, no cais Pharoux, às águas mansas e abençoadas da Guanabara.

Finalmente, então nos perguntamos: quantos sílvios-santos deixaram de nascer ou morreram na praia, porque seus pais não tiveram a oportunidade de escapar da maldição de suas terras e das garras dos seus tiranos; e se tentaram, outros países não os acolheram!

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

Ver todos os comentários   | 0 |

Facebook
 
© 2007-2024 GP1 - Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do GP1.