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Ciência e Tecnologia

Cientista tenta criar sistema de alerta precoce para próxima pandemia

Em um pequeno laboratório no Camboja, Jessica Manning está à espreita de doenças emergentes.

A covid-19 chegou no Camboja há pouco mais de um ano, em 23 de janeiro, quando um cidadão chinês chegou de Wuhan, China, a cidade onde a doença foi detectada pela primeira vez, e ele logo adoeceu com febre. Um teste de PCR para detectar o material genético do SARS-CoV-2, o novo coronavírus que causa a covid-19, deu positivo. Com essa notícia, a doença havia atravessado oficialmente as fronteiras de outro país.

Para o Camboja, um país em desenvolvimento com um sistema de saúde rudimentar e vários voos diretos de Wuhan, a nova doença parecia apresentar um risco especialmente alto.

Jessica Manning, pesquisadora de saúde pública do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, que trabalhava no Camboja há anos, também viu ali uma oportunidade: ajudar o país a se juntar ao esforço global de vigilância para novas doenças.

Jessica analisou amostras nasais e orais do paciente por meio de um sequenciador genético, um dispositivo que lê as letras que compõem o genoma de um organismo. O sequenciador era uma aquisição recente de seu laboratório no departamento de parasitologia do governo cambojano em Phnom Penh. “Eu mal podia esperar que as sequências saíssem do sequenciador”, relembrou Jessica. "Era uma alegria eufórica".

O sequenciador carregou os dados brutos para um pacote de software on-line chamado IDseq, que poderia juntar os genomas da amostra e compará-los com outros organismos conhecidos. O sistema, sem nenhuma dica do grupo de pesquisa de Jessica sobre o que a amostra poderia conter, verificou que ela continha um vírus com genoma praticamente idêntico ao do novo coronavírus identificado em Wuhan. Das aproximadamente 30 mil letras no genoma do vírus, apenas uma era diferente entre as duas sequências.

Naqueles primeiros dias da covid-19, os pesquisadores não sabiam quão precisos eram os testes de PCR ou se o vírus estava gerando novas cepas com propriedades potencialmente diferentes. O relatório cambojano ajudou a confirmar a precisão do teste de PCR e revelou que apenas pequenas mudanças nas sequências estavam aparecendo. O vírus não parecia estar sofrendo mutações substanciais - uma indicação de que seria mais fácil testar, tratar e vacinar contra a doença.

Para Jessica, o exercício foi a prova de que mesmo um pequeno laboratório de pesquisa em um país em desenvolvimento poderia detectar com sucesso patógenos novos ou inesperados e coletar informações importantes sobre eles em seu genoma. Portanto, seu laboratório e outros como ele poderiam servir como um sistema de alerta precoce para a próxima potencial pandemia.

Abrindo a caixa preta

Jessica, 40 anos, começou sua carreira estudando não novas doenças, mas as conhecidas que afetam principalmente países em desenvolvimento.

Em 2008, enquanto se graduava em medicina na Universidade Emory, ela foi para o Mali para estudar e tratar a malária como parte de um projeto na Universidade de Bamako. “Eu morei no mato por seis meses para coletar amostras”, disse ela. “Casos graves de malária chegam à noite, o que ninguém havia me contado. Eu, de fato, não tive uma noite inteira de sono por meses. Foi horrível, porque muitas das crianças morriam quando as estávamos avaliando, momentos após entrarmos pela porta”.

Ela lembrou da primeira vez que administrou um novo medicamento contra a malária chamado artesunato em uma jovem paciente gravemente doente. “Ela estava quase morta e, dois dias depois, estava bem e de pé”, disse Jessica. "Foi como Lázaro". Jessica tem uma foto sua com a paciente, uma garota chamada Fatoumata, em seu consultório.

Ela gostou de como o trabalho combinou pesquisa e tratamento de pacientes. “Isso traz toda uma nova dimensão quando você está ao lado do leito e na bancada”, disse ela, referindo-se ao laboratório. “Fazer um trabalho como este é devastador. É avassalador. Mas é aí onde devemos estar trabalhando”.

Depois de desenvolver projetos de saúde pública no Haiti, Malaui e Ruanda, Jessica fez mestrado em epidemiologia em 2014 e, em seguida, assumiu o cargo de médica pesquisadora no Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, agência chefiada por Anthony Fauci.

Em 2018, Jessica ficou sabendo de um Grande Desafio Global da Fundação Bill e Melinda Gates, que concedeu a pesquisadores bolsas para usar a genômica para descobrir mais sobre doenças infecciosas em países em desenvolvimento. Jessica viu isso como uma forma de "descobrir o que está acontecendo nesta caixa preta do Camboja" - para decifrar exatamente quais patógenos causaram suas muitas doenças inexplicáveis.

Em 2019, Jessica ganhou uma das bolsas e logo voou com três colegas para o Chan Zuckerberg Biohub, um centro de pesquisa em São Francisco, onde aprenderam a usar ferramentas que poderiam ajudar a abrir com força a caixa preta.

‘É como um quebra-cabeça gigante’

Sreng Sokunthea, uma técnica de laboratório, entrevista um operário que estava com febre alta. Foto: Thomas Cristofoletti/The New York Times

Para identificar patógenos desconhecidos, o projeto de Jessica emprega um método chamado sequenciamento metagenômico. Técnicas mais tradicionais de diagnóstico genômico, como os testes de PCR comumente usados para detectar o novo coronavírus, procuram a sequência genética característica de um único patógeno. Esses testes são precisos, rápidos e relativamente baratos - mas eles podem encontrar apenas um patógeno que você já sabe que está procurando.

Em vez disso, o sequenciamento metagenômico lê todo o material genômico em uma amostra e identifica todos os organismos presentes: bactérias úteis, patógenos comuns e micróbios que nunca foram identificados antes. “A metagenômica pode mostrar o que não sabemos que não sabemos”, disse Jessica, parafraseando uma citação famosa do ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld.

Mas identificar realmente o desconhecido que nem sabemos que existe é complicado. Máquinas de sequenciamento comuns dividem moléculas de DNA e RNA em segmentos curtos, cada um com dezenas a centenas de elementos constitutivos do material genético, e leem as sequências desses elementos em cada um. Isso produz bilhões de sequências curtas sem nenhuma informação em relação a como foram originalmente organizadas.

Para dar sentido a todos esses dados, o laboratório de Jessica usa o IDseq, um software de código aberto on-line gratuito que faz a engenharia reversa de como todos os segmentos curtos podem se encaixar para formar qualquer número de genomas e os compara com genomas conhecidos em bancos de dados públicos .

“É como um quebra-cabeça gigante”, disse Joseph DeRisi, bioquímico da Universidade da Califórnia, em São Francisco, e principal desenvolvedor do IDseq. “Onde as bordas das peças combinam, você pode juntá-las e montar uma imagem do genoma.” Esta análise é computacionalmente exigente, contando com centenas ou milhares de processadores poderosos. Mas o IDseq roda em servidores na nuvem, permitindo que pesquisadores em países em desenvolvimento façam a análise remotamente, sem nenhum custo.

Depois de aprenderem a usar a metagenômica, Jessica e seus colegas voltaram ao Camboja e iniciaram um projeto de sequenciamento em um hospital na cidade de Chbar Mon. Agora, quando os pacientes com febres inexplicáveis chegam ao hospital, os funcionários colhem amostras de sangue e as enviam para o laboratório de Jessica no departamento de parasitologia do governo cambojano em Phnom Penh, onde os pesquisadores executam a análise metagenômica para tentar identificar o que exatamente está afetando o paciente.

Um sistema de alerta precoce

A observação de novos patógenos no sudeste da Ásia tornou-se recentemente uma parte importante do esforço global para entender a pandemia de covid-19 e impedir a próxima antes que ela aconteça. No final de janeiro, um grupo de pesquisadores, a maioria do Instituto Pasteur no Camboja, anunciou que havia usado o sequenciamento metagenômico para descobrir um novo coronavírus intimamente relacionado ao SARS-CoV-2 em um morcego capturado no Camboja em 2010. A descoberta “sugere que o sudeste da Ásia representa uma área decisiva a ser considerada na busca contínua pelas origens do SARS-CoV-2 e na vigilância futura de coronavírus”, escreveram os pesquisadores.

Jessica planeja trabalhar com o Centro de Doenças Transmissíveis do Camboja, usando metagenômica para começar a monitorar os animais em dois mercados locais úmidos, onde os patógenos podem chegar aos humanos. E seu grupo recentemente expandiu seu projeto de monitoramento de febre para dois hospitais lotados em Phnom Penh, com o objetivo de fornecer um alerta precoce a respeito da propagação de doenças novas e não diagnosticadas.

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