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Política

Juristas discutem alterações na Lei do Impeachment; veja o que pode mudar

Classes jurídica e política concordam que é preciso rever aspectos da lei, mas não sua totalidade.

Desde que assumiu o Palácio do Planalto, em janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro já foi alvo de 143 pedidos de impeachment. Mais de 1,5 mil pessoas e 500 entidades subscreveram o conjunto de requerimentos, o que, segundo juristas, revela a necessidade de se rever as condições estabelecidas hoje para o afastamento de presidentes da República. E por um motivo principal: é preciso deixar claro qual o papel do presidente da Câmara dos Deputados no processo. Em três anos, só sete pedidos foram analisados e descartados.

Vigente desde 1950, a atual lei é, desde meados de fevereiro, objeto de uma comissão de estudos formada por juristas e criada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), com o objetivo de atualizá-la. O grupo tem 11 integrantes e é comandado pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi ele quem presidiu a sessão que determinou o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016.

Ao instituir a comissão, Pacheco afirmou que a revisão deve ser completa. “Os problemas da lei já foram apontados em diversas ocasiões pela doutrina e jurisprudência como fonte de instabilidade institucional, demandando sua completa revisão”, disse. Mas há divergências. As classes jurídica e política concordam que é preciso rever aspectos da lei, mas não sua totalidade.

Redator do “superpedido” de impeachment de Bolsonaro apresentado em junho do ano passado, o advogado Mauro Menezes defende uma mudança “cirúrgica”, que abarque apenas os temas mais relevantes. “Não estamos num momento constituinte. Temos de tentar melhorar a lei diante de situações que geram perplexidade, quando o sistema é bloqueado, por exemplo”, afirmou Menezes, que é ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência.

O advogado sustenta que deve ser mantido o poder nas mãos do presidente da Câmara, como já define a lei. “Mas o texto pode ser mais explícito ao mostrar que o ato de recebimento da denúncia deve atender a um paradigma formal. Tem de haver um prazo, no mínimo, para que ele se manifeste”, disse. “Hoje, os pedidos são engavetados simplesmente, sem uma avaliação prévia.”

Plenário

A jurista e ex-procuradora da República Deborah Duprat observou que a Constituição de 1988 mantém as condições da Lei do Impeachment e que cabe ao plenário da Câmara decidir sobre a admissibilidade da acusação recebida. “A Constituição não reserva nenhum papel ao presidente da Câmara. Ela diz que quem faz essa análise é o plenário, não uma figura singular. É absurdo imaginar que tenha tantas denúncias, inclusive vindas de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI da Covid) contra o presidente da República, e isso possa se concentrar em uma única pessoa. É uma disfuncionalidade.”

O que se perpetuou como regra – a decisão exclusiva de o presidente da Câmara decidir sobre os pedidos de impeachment – é resultado da interpretação do regimento interno da Casa, que paralisa o processo enquanto o responsável não se manifesta. Desde 2019, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (sem partido-RJ) recebeu 97 pedidos de impeachment de Bolsonaro, e o atual, Arthur Lira (Progressistas-AL), outros 77 (veja infográfico). Nenhum deles foi aceito.

Para o professor associado da Faculdade de Direito da USP Rafael Mafei, autor do livro Como remover um presidente, a prioridade deve ser acabar com os superpoderes do presidente da Câmara. “É preciso colocar regras no papel para que haja alguma possibilidade de que uma minoria minimamente qualificada exija uma manifestação do presidente. Me parece um contrassenso que, para combater uma autoridade potencialmente abusiva, você dependa de uma outra que possa abusar de seus próprios poderes”, afirmou.

Mafei disse que o segundo ponto mais importante a ser debatido se refere à estrutura dos recursos dentro do Legislativo. Segundo o professor, a lei deve trazer, em detalhes, se é possível recorrer em caso de arquivamento do pedido e quem poderia fazer isso.

Ex-ministro da Justiça e advogado de Dilma durante o processo que culminou em seu afastamento, José Eduardo Cardozo concordou que é preciso delimitar melhor os prazos de recursos. “Discricionariedade é sempre um perigo”, disse Cardozo.

Para ele, “vaga uma incerteza” em torno do impeachment que não se coaduna com a dimensão e a relevância do processo. “Tem um constitucionalista estadunidense (Richard A. Posner), que diz que o impeachment é um terremoto político. Essa expressão é importante para verificar que tem que ser tratado com solenidade, com rigor, com precisão. É necessária uma lei que recomponha esse instituto no lugar devido.”

A Constituição de 1988 “abraçou” a Lei do Impeachment, mas pouco procurou adequá-la aos novos parâmetros. Por isso, alguns pontos precisaram ser elucidados posteriormente pelo Supremo. Cardozo citou, por exemplo, a questão da inelegibilidade.

No entendimento do Supremo, a perda dos direitos políticos em caso de afastamento não é automática. Foi o que ocorreu com Dilma, que sofreu o impeachment, mas não foi considerada inelegível. Já Fernando Collor de Mello, em 1992, teve os direitos políticos cassados mesmo tendo renunciado. “Essa revisão da lei pode precisar esse ponto.”

Crimes

Há uma série de outros pontos que carecem de revisão, segundo analistas ouvidos pelo Estadão. Há quem defenda uma ampliação do rol de crimes hoje considerados de responsabilidade e, portanto, passíveis de serem analisados em um processo de afastamento. O doutor em Direito Constitucional Lucas Paulino disse que é preciso preparar uma estrutura legal capaz de impedir arroubos antidemocráticos.

“O presidente pode, por exemplo, disseminar fake news contra o Poder Judiciário? Será que não vale a pena criminalizar esse tipo de conduta de forma mais explícita? Hoje, essa prática pode até ser enquadrada no dispositivo que fala sobre proceder de modo incompatível com o decoro. Mas esse dispositivo é muito genérico”, afirmou.

Paulino acredita que a comissão deve aproveitar a oportunidade para prever novas condutas de posturas de presidentes da República que ameacem a democracia, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, a imprensa e a sociedade civil. “O impeachment tem uma vocação de ser um instrumento de reação de democracia militante. Isso quer dizer que é um instrumento de direito constitucional disciplinar para punir o presidente que ameaça a Constituição, a democracia e o estado de direito.”

Ex-juíza do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina, Ana Blasi levantou outra questão: como reduzir o uso político do impeachment. Segundo a advogada, crimes de responsabilidade deveriam se basear em um rol que fosse taxativo, e não exemplificativo.

Estados

Ana defendeu a vice-governadora de Santa Catarina, Daniela Reinehr (PL), nos dois processos de impeachment movidos contra o governador Carlos Moisés (sem partido), em 2020 e 2021. Ambas as tentativas não obtiveram sucesso em Santa Catarina, mas, após décadas de intervalo, o Brasil afastou oficialmente um governador, no ano passado: Wilson Witzel (PSC), eleito em 2018 para comandar o Rio. Ele foi o segundo a sofrer impeachment no País – Muniz Falcão, de Alagoas, perdeu o mandato em 1957 em ação que foi marcada por um tiroteio dentro da Assembleia Legislativa do Estado.

Witzel caiu por desvios na utilização de recursos públicos durante a pandemia de covid-19. Denúncia semelhante também ameaçou a permanência do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), e colocou sob pressão quem exercia o cargo de prefeito, como Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio, e Nelson Marchezan (PSDB), em Porto Alegre.

Outros casos

A revisão da lei, agora, pode abarcar mudanças também em relação a governadores e prefeitos, assim como ministros do Supremo. Entre 2021 e 2022, um total de 25 pedidos contra magistrados da Corte foram apresentados ao presidente do Senado – neste caso, é dele o poder de abrir ou não o processo. Com exceção do pedido feito pelo presidente Jair Bolsonaro contra o ministro Alexandre de Moraes, negado por Pacheco em agosto do ano passado, nenhum outro foi analisado.

A utilização mais frequente do instrumento, desde de o início da pandemia, expôs a necessidade de se definir melhor os sujeitos ativos no processo, segundo a ex-juíza Ana Blasi, “a fim de se evitar que um vice ou um ministro sejam arrastados para uma denúncia sem nunca terem praticado um ato de responsabilidade ou assumido o cargo em questão”.

Em ano de eleições, Ana questionou ainda se um chefe do Executivo reeleito pode ser julgado por atos cometidos em sua primeira gestão no cargo. “A reeleição foi trazida depois da Constituição e a Lei do Impeachment não deixa claro se aqueles atos praticados no primeiro mandato teriam consequências no segundo.”

‘Problema não está na lei, está no sistema’, afirma Arthur Lira

Alvo de questionamentos por não colocar em análise nenhum dos 77 pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro protocolados em sua gestão na Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) afirmou ao Estadão que “o problema não está na lei, está no sistema”. Para o deputado, o que define se um processo de impeachment caminha é sempre a política e não falhas na legislação.

“Como (os ex-presidentes) Lula e Fernando Henrique Cardoso, o Bolsonaro tem sustentação no Congresso”, disse Lira. “Quando não há conjugação de fatores políticos e sociais não há impeachment.”

Na avaliação do deputado, a criação da comissão pelo Senado é “inadequada”. Ele também se diz contra a criação de um prazo para o presidente da Câmara avaliar as denúncias. “Você pode entrar com um pedido, teu vizinho pode entrar com outro, qualquer um no Brasil pode entrar com um pedido de impeachment. A Câmara vai ficar fazendo só isso o tempo todo.”

Lira diz que vai propor a retomada da discussão sobre o semipresidencialismo, modelo que defende. “Com isso, essa questão do impeachment perde até o efeito. Fica uma coisa obsoleta.

Principais pontos que devem ser reavaliados

Rol de crimes: A lista de crimes de responsabilidade que incidem sobre o presidente da República precisa ser mais específica, na avaliação de alguns juristas, e não exemplificativa, o que abre brecha para diferentes interpretações.

Dolo: Também se discute a criação de divisões na tipificação do ato criminoso, como ocorreu na nova Lei de Improbidade. Nesse caso, o dolo poderia ser interpretado como “eventual”, ou seja, sem intenção, o que resultaria em uma sanção mais branda.

Admissibilidade: É quase consenso que a decisão sobre aceitar ou não um pedido de impeachment não pode caber apenas ao presidente da Câmara dos Deputados e que deve haver um prazo para uma resposta sobre a sua admissibilidade.

Recursos: Juristas concordam que a lei precisa detalhar melhor quais as possibilidades de recurso contra decisões de arquivamento de uma denúncia ou de pedidos feitos pela defesa já no andamento do processo. A intenção é retirar os superpoderes concentrados nos presidentes da Câmara e do Senado.

Direitos políticos: Não está claro que a cassação dos direitos políticos deve ser um ato automático em caso de afastamento. É por isso que tanto Fernando Collor como Dilma Rousseff foram julgados especificamente sobre esse ponto pelo Senado e em função de uma decisão do Supremo. Juristas discutem se a lei pode determinar uma regra.

Supremo: Assim como ocorre na Câmara no caso de pedido de impeachment contra o presidente da República, cabe exclusivamente ao presidente do Senado resolver sobre a admissibilidade de ações contra um ministro do STF. Há quem defenda que a reforma da lei amplie o leque de responsáveis neste caso e estipule prazos.

Reeleição: Dúvidas sobre a continuidade dos crimes em um segundo mandato também podem ser debatidas pela comissão na revisão da lei.

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